Ivana Rebello
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Por Ivana Rebello - 17/6/2022 09:25:40 |
AS DOBRAS DO SINO Ivana Ferrante Rebello Uma capela pequena, de cores brancas e azuis, ergue-se em meio ao jardim da fazenda. Por ali, de qualquer lugar que se olhe, ela é vista. Antes que se iniciem os ofícios do dia, meu pai abre suas portas. Todas as manhãs. Essa capelinha, feita de tijolos e telhas, conta a mais bela história de nossa família. Seu projeto foi de Deus, sua argamassa foi de dor, suas tintas nasceram da fé. Essa é a história. Há cerca de vinte anos, meu pai, ao fazer uma cirurgia para retirada da vesícula, adquiriu hepatite medicamentosa, causada por um anestésico. Sua cor, sempre rosada, da velha cepa do português Jayme Rebello, passou a um amarelo ocre, que pintou seu corpo, da raiz dos cabelos ao fundo do olho. A doença, que minava sua energia e vigor, obrigou-nos a levá-lo a Belo Horizonte, para tratamento. O caso foi sério. Minha mãe e metade das irmãs seguiram com ele. A outra metade, como eu, ficou em casa, entre pranto e oração. Minha mãe é rezadeira, algumas filhas a puxaram. Eu, entre livros e literaturas, sou meio erradia – mulher de pouca religiosidade e muita esperança. Entretanto, a situação era grave. No hospital, a equipe especializada em problemas do fígado aventou a possiblidade de transplante, pois meu pai não reagia a medicamentos. Os exames diários assinalavam para taxas alteradas, cada vez piores. Ouvi termos que ficaram cúmplices de meus ouvidos leigos: transaminases, níveis de TGO e TGP... Ouvi o choro de todas nós. Seis filhas apaixonadas pelo pai; minha mãe, sua companheira de tantos anos. Minha irmã médica, acompanhando o caso de perto, foi a porta-voz da notícia: nosso pai, muito debilitado, não resistiria a um transplante. A medicina chegava a um momento em que não poderia fazer mais nada. Eu e as demais seguimos para a capital do estado aos prantos. Foi uma viagem de dor. Alternávamos no quarto do doente, permitindo o descanso noturno a mamãe, que não dormia no hospital. Durante os dias, ininterruptamente, ela se desvelou à cabeceira do marido. Quando uma das filhas chegava, ela corria à capela do hospital, debulhando seu inseparável terço. Numa manhã triste, minha irmã Cláudia acompanhava meu pai. Nunca o deixamos só, nem por um minuto. Eu, insone, ficava mais às noites. Somos seis filhas. Uma escadinha de mulheres valentes, criadas por meu pai para “nunca depender de marido” e por minha mãe para “trabalhar para terem o que quiserem”. Meus pais são pessoas de missas quase diárias, reflexões sobre o Evangelho e uma longa história de trabalho na igreja. Na nossa casa, as orações são frequentes. Assim, era hábito, no hospital, uma freira em serviço entrar e ministrar a ele a comunhão diária. Já se ia mais de um mês de internamento; estávamos todos abatidos. Naquela manhã, uma freira falante e vigorosa, após a oferta da comunhão a meu pai, perguntou a ele se tinha fé. Ele abriu os olhos e concordou. Conheço poucas pessoas no mundo com uma fé como a de meu pai. Ele entrega e espera. Enquanto chorávamos, abatidas pelo quadro grave de sua doença, ele sorria debilmente e rezava. Por isso, foi recebido com naturalidade o gesto de a freira colocar entre seus dedos uma medalhinha pequena, de Nossa Senhora das Graças: “Acredite! Ela vai curá-lo!” Meu pai balançou a cabeça, concordando. No dia seguinte, os primeiros exames mostraram significativa melhora. E, aos poucos, o quadro clínico do nosso pai foi melhorando. O médico que o acompanhava, sentou-se várias vezes conosco, para participar de nossas orações e alegria. Ele confessou à Regina, a médica da família, que não sabia explicar. Acontecia, dia a dia, um milagre. Devo enfatizar que, exceto eu, que escolhi o caminho da educação, todas as minhas irmãs são ligadas às áreas da saúde: uma médica e as demais farmacêuticas. Essas, seguiam com olhar de profissional as alterações positivas dos exames; eu, aceitava, feliz. Em oito dias, após a visita da freira, meu pai recebeu alta. Sua história foi contada nos corredores do hospital, muitos entraram em seu quarto para ouvi-lo, outras freiras vieram. Meu pai, na despedida, queria agradecer à freira piedosa, que lhe dera a medalha. Reunidas todas em sua presença, nenhuma estivera ali, naquele dia. E antes que pensem que tudo não passou de delírio de doente, lembro que, naquela manhã, quem o acompanhava era Cláudia, a que, entre nós, tem a mente mais alerta. Então, uma freira, trouxe um retrato. Meu pai e Cláudia a reconheceram. Tratava-se de uma freira há muito falecida, a irmã Catarina, que estivera naquela unidade hospitalar há várias décadas. Como explicar os fatos da vida? Essa é a história de minha família. Sempre a contamos. Meu pai, já recuperado, construiu a Capela de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, na fazenda Santa Clara. Ela está lá. Pequena capela, testemunho de pedra e de fé, cuidadosamente guardada por meu pai. Com as primeiras luzes da manhã, ele abre suas portas, e as fecha, assim que cai a noite. Para mim, esse gesto de meu pai é uma oração. Acreditam em milagres? Todos nós aprendemos a acreditar que a vida é um milagre. Quando nos reunimos para rezar, meu pai toca o sino. Sob as dobras do sino, a nossa história ainda está sendo contada. Meu pai, neste ano, completará 85 anos. Está lúcido e goza de boa saúde. Ele e mamãe comemoram, em setembro, 59 anos de um feliz casamento. A capela pequena, de cores brancas e azuis, ergue-se em meio ao jardim da fazenda. Sempre nos reunimos lá, nos momentos de júbilo ou de dor. É bálsamo e acolhida, em meio ao sol inclemente do sertão. Em meio ao canto dos pássaros e ao berro do boi, os sinos dobram. Eles dobram por todos nós. |
Por Ivana Rebello - 11/6/2022 19:46:58 |
A vida é um momento que passa A velha casa acolheu-me novamente. E lá estava ela, tia Dulce, sentada à mesa, no cotidiano café das quinze horas. Desde menina, quando ali entrava no meio da tarde, aquela grande mesa estava sempre posta. Antes, com as doze cadeiras ocupadas - café bem forte, para meu avô, café doce para o resto da família. Nesta quarta-feira, de um junho acinzentado, lá estava a mangueira centenária, plantada pela escrava forra, a Joana, que a deu de presente à família, quando foi visitar vovó, pelo nascimento do filho mais velho, Antônio. Já está dobrando os galhos, plenos da melhor manga comum que já provei, de um doce só encontrado em casa dos avós. Ali, em conversação com tia Dulce, esqueci-me de olhar os ponteiros do relógio e deixei que minhas vistas percorressem o jardim interno, sempre muito verde e florido. Tudo estava ali, em verde e beleza, e muito faltava. Vez ou outra, tia Dulce interrompia a conversa e, com os olhos cheios d`água, perguntava: "Cadê Tatá?". Minha tia Tatá, Maria Clara na pia batismal, querida tia Tatá, para os sobrinhos, foi uma das que nos deixaram há pouco tempo. Era presença forte, bem-humorada, guardiã das memórias que agora se fixam na casa antiga, nas paredes de retratos, nas louças, no aquário de peixes ornamentais, nas três cadeiras dispostas na sala de televisão- uma para tia Célia, outra para tia Tatá, a terceira para tia Dulce... Também é forte a lembrança das grandes festas, quando a casa se abria para as celebrações, aniversários dos avós, natais, e um cheiro de pernis, tortas e bolos e outras muitas iguarias para uma família que se reunia, feliz, em torno da mesa farta. Falamos das festas, pedi algumas receitas - aquelas que aqueceram meu coração de menina -; e meus olhos se deslocaram para os painéis de retratos comemorativos, fotografias da família nas festas juninas, "as festas das tias", que reuniam as centenas de descendentes do português Jayme Rebello. E tia Dulce, silenciosa e diligente, ornamentava os dias com arranjos de flores e frutas, presépios enormes para celebrar o nascimento de Cristo. Até fabricou uma gigantesca árvore de natal, que preenchia a sala principal de luzes e cores, nos mágicos natais da infância. Há alguns anos, a casa era habitada por ela e tia Tatá. Há alguns anos, eu percorria os quartos fechados com misto de gratidão e dor. A sala, a enorme sala de jantar central, porém, está sempre aberta, para todos da família que por ali passam. Ainda hoje sentei-me ali, vendo as luzes da tarde entrar pela janela, iluminando a mesa e minha alma. Ouvi os passos de tia Tatá, o louro cortando a manhã com seus gritos: "Quer café, Louro? Coitado de Louro". Soube que ele foi enterrado entre as folhagens do jardim. Senti o cheiro das linguiças assadas, o rumor de Nero passando entre minhas pernas, Vovó sorrindo docemente em sua cadeira, vovô em pé, perto da porta, olhando com orgulho a casa cheia, tia Célia acariciando com ternura a cabeça do canarinho. Depois, foram se achegando tia Olga, tio Jayminho, tia Carmem. Tio Toninho veio depois, de forma mais barulhenta; tio Fábio, com riso perspicaz, trazendo notícias; tia Lúcia, com serena dignidade, tia Vera, com seu olhar generoso... Todos que já se foram, todos estavam ali, conosco, sentados em torno da mesa. Tia Dulce, com olhar úmido, repetiu: "A vida é um momento que passa; o resto é fumaça". Havia mais versos que eu, no afã de viver o momento, não registrei, nem anotei. Tentei reter entre os dedos o breve momento da vida. Tia Dulce, a casa de parte da minha vida, o fio tênue do tempo. Nunca saberei mensurar as horas em que ali estive. Para mim, foi grande, foi enorme, foi infinito. Dentro da tarde coube tudo, além da minha saudade e do meu amor. Deixei meus dedos correrem amorosamente pelos móveis. Fui embora, com lágrimas nos olhos. Não sei explicar por que motivo chorei. Mas eu disse "Até logo, tia!". E é assim que tudo se encerra. Ou começa. Para meu pai José Roberto, para tia Izabel e para tio Geraldo, com meu afeto. Ivana Rebello. 08/06/2022. |
Por Ivana Rebello - 10/10/2017 08:55:45 |
Quero uma fita amarela Quero uma fita amarela, linda e brilhante, gravada com o nome da professora que morreu para salvar seus alunos. Quero uma fita bem amarela, tremulando ao sol do Norte de Minas, para cada criança que partiu, antes da hora. Quero uma fita amarela para toda mãe que sai para trabalhar, com o coração apertado, ao deixar seus filhos na escola. Quero uma fita amarela nos cabelos da jovem professora que planejou durante toda a semana suas aulas, mas não sabe se o salário será depositado em dia. Quero uma fita amarela nas mãos da servente que prepara a merenda de cada menino e menina, que brincam no pátio. Quero uma fita amarela para o professor que levou um murro do aluno. Quero uma fita amarela, de ouro, para os alunos de licenciatura que ainda acreditam. Quero uma fita amarela e mimosa para a adolescente que tira nota máxima na redação. Quero uma fita amarela para os meninos especiais que frequentam as escolas que não estão preparadas para recebê-los. Quero uma fita amarela para a escola sem quadro negro, sem carteira, sem apagador, mas que figura nas estatísticas do governo. Quero uma fita amarela para cada pai que ainda acredita que o melhor que poderá legar a seu filho será uma educação de qualidade. Quero uma fita amarela, porque ela é a nova cor da esperança. Deverá arder nos olhos de quem detém o poder e nada faz; deverá amargar na boca de quem sabia e nunca agiu. Deverá irradiar luz e calor para aqueles que amam e fazem de seu ofício um constante desafio. Deverá incomodar quem desconhece. Deverá fortalecer quem padece. Deverá dar forças para quem luta. Mas é preciso que ela seja amarrada em cada janela, cada poste, cada árvore. Amarela, como um alerta à nossa pasmaceira. Amarela, como uma homenagem à razão, que parece ter se perdido por aí. Amarela como sonhou Van Gogh em seus delírios, para nos lembrar que existe um infinito. Amarela, para nos seduzir com sua luz. E muito, muito amarela, para nos fazer enxergar os incautos. Essa fita amarela, que eu quero, haverá de nos lembrar, definitivamente, de que não precisamos de comoção momentânea. Precisamos é de uma política educacional corajosa que tire o Brasil do humilhante lugar que ocupa. Precisamos de governos que distribuam menos comendas e mais oportunidades. Precisamos de políticos que troquem a propina pela equação matemática, o discurso pela ética e pela ação construtiva. Precisamos de uma família que frequente a escola. Precisamos de uma criança que brinque de novo. Quero uma fita amarela. Grande, brilhante, vaidosa. Porque eu quero substituir o choro pelo riso, a derrota pela vitória, a morte pela vida. Está chegando o dia dos professores. A universidade em que trabalho não comemora. A sociedade não vê. A imprensa não noticia. Não quero ouvir que ser professor é um sacerdócio, missão ou doação. Não quero ver o rosto da professora cheio de hematomas. Não quero chorar por nenhuma criança morta, porque não houve o zelo necessário do estado. Não quero ouvir que meu salário está sendo fatiado, desvalorizado, dividido, aviltado. Nem quero presentes. Eu quero uma fita amarela bem presente, numa História diferente, de um país diferente, no qual as crianças e as escolas sejam protagonistas. (Dedico esse texto a cada aluno que já passou ou passará por minha sala de aula). |
Por Ivana Rebello - 8/12/2016 17:17:22 |
Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus. O menino tinha três anos. Tinha tamanho de menino, pés chatos de menino descalço, mãos pequenas de menino, corpo magro de menino. Como todos os meninos, pulava brejos inexistentes, soltava barcos de papel na enxurrada e comia fruta caída no chão. Como todos os meninos, conversava com amigos de papel, desenhava coisas mágicas na calçada, gostava de doce bem doce e colorido. O menino tinha três anos. Tinha costela de menino saltando nas costas. Orelha encardida de menino. Curiosidade de menino à flor dos dedos. Perguntas de menino saltando na testa. E medo de menino, nas noites muito escuras. Era um menino. Mas apareceu nos jornais cheio de sangue e lama. Jogaram uma bomba na sua casa. Fizeram uma guerra na sua vida. Mataram seu pai, sua mãe e seus brinquedos. Ele tinha apenas três anos. Foi levado ao hospital cheio de feridas. Elas sangravam por fora e por dentro. Sua pele suja comovia. Seu choro sujo comovia. Sua voz suja comovia. Não sei qual o idioma que o menino falava, mas todos entendiam sua língua. Ele falava a linguagem universal da dor. E porque ele falava de coisas sujas, toda a humanidade sentiu-se suja. Ele tinha apenas três anos. Mas, por detrás dele, havia milhares de adultos armados até os dentes, exibindo suas garras de ódio. Por detrás dele, havia uma centena de milhares de povos indiferentes, comendo indigestamente seu churrasco domingueiro. Ou entoando cânticos nas igrejas, piedosamente. Ele tinha apenas três anos. Como entender todas as circunstâncias? O menino, na sua ignorância de menino, não tinha entendimento de territórios, fronteiras, intolerância étnica, facções religiosas. Ele sequer sabia o nome da capital do seu país. Mas, por tudo isso que ele não sabia, seu corpo, seu mundo, seu sonho foram abatidos. Tiraram uma fotografia do menino de três anos. Ele, menino, apareceu em todos os jornais do mundo. Ele, menino de três anos, perfurou as distâncias, atravessou oceanos, invadiu a paz de nossas casas, fez com que o homem se engasgasse com seu bife ao ponto e a mulher quebrasse a ponta de sua unha vermelha. Na fotografia de jornal, pudemos ouvir seu choro estupefato. Na fotografia do jornal, pudemos sentir a epiderme cheia de feridas e vazia de abraços. Na fotografia do jornal, o menino gritava por colo. Quem pôde dormir com tanto barulho? O choro do menino multiplicou-se, atingiu milhares de decibéis, penetrou na frincha das portas, alcançou-nos por baixo dos cobertores, sacudiu os vidros das janelas, abalou as raízes das árvores. O choro do menino foi o réquiem dos povos sobre a terra. O menino tinha três anos. No último mês a agência EFE informou que mais de 150 mil pessoas morreram desde o início da guerra que assola a Síria há três anos. O menino tinha três anos. De acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), ONG responsável pelos dados da guerra divulgados pela EFE, dados informações recebidas de uma rede de ativistas e fontes médicas militares relatam 150.344 mortos pela guerra, entre os quais estão incluídos 51.212 civis, dos quais 7.985 são crianças. O menino tinha três anos. Tinha tamanho de menino, pés chatos de menino descalço, mãos pequenas de menino, corpo magro de menino. Como todos os meninos, pulava brejos inexistentes, soltava barcos de papel na enxurrada e comia fruta caída no chão. Como todos os meninos, conversava com amigos de papel, desenhava coisas mágicas na calçada, gostava de doce bem doce e colorido. Ele tinha apenas três anos. Levaram-no para o hospital, para tentar curar suas feridas, mas ela eram muito profundas. Ele era uma dessas 7.985 crianças, que tinham tamanho, jeito e inocência de menino. O menino morreu. Mas antes de morrer, ele olhou para o enfermeiro e disse, com a força da última resolução de sua vida: “Quando eu morrer, eu vou contar tudo a Deus”. O menino tinha apenas três anos. Ivana Rebello. |
Por Ivana Rebello - 14/8/2016 09:29:18 |
O brinquedo Eram apenas três quadras, mas se abria um caminho infinito entre eles. Quando segurava o braço do velho pai com sua mão, sentia que seu próprio corpo curvava-se mais que o dele. A placa azul, meio desgastada, anunciava: Lar dos idosos. E isso era tudo. Em outubro, seria o aniversário do pai. Durante meses serrara, aparara e lixara. Com um canivetinho pequeno fora tirando as pontas e construindo seu segredo. Devagar o pedaço de madeira fora tomando forma e identidade. Nunca fora artista, mas aquela ideia lhe viera repentinamente, depois da última visita ao velho pai. Segurara suas mãos, finas como papel, e sentira que a vida dele se ia apagando devagar. Nas poucas horas disponíveis da semana, ajeitava-se num cantinho do quarto em que morava e, de posse do canivete e de uma marretinha, ia esculpindo forma em madeira macia e cheirosa. Enquanto moldava o pequeno objeto, imagens de outros tempos entravam pela janela, sem pedir licença. Via a mãe, sempre magra, debruçada sobre o fogão, com duas panelas, de onde vinha um cheiro confortante de feijão. Ele, menino, cochilava sobre os livros, tentando enganar a fome. Vez ou outra, ela lhe passava um pito: “Estuda, minino!” E, depois, amaciava a voz: “Seu pai deve de tá chegando ...” Poucas horas após ele entrava, o rosto cansado iluminava-se ao ver o menino; puxava um tamborete e sentava-se à mesinha. Esses gestos eram a senha para que a mãe lhes servisse dois pratos de feijão com arroz: um feijão meio ralo que, às vezes, ela enriquecia com pele de porco. Só depois é que ela, suspirando, sentava-se à mesa com seu prato, sempre mais vazio que os deles. De quinze em quinze dias, o pai tinha folga no serviço. Ele e a mãe montavam na bicicleta e iam, os três, ao parque municipal. Nesses momentos, sentavam-se sobre o gramado, ela ajeitava o melhor vestido com os dedos magros e o pai, com um gesto largo, enfiava a mão no bolso. Sorrindo, estendia-lhe uma nota amassada: “Pode ir comprar seu sorvete.” Ele queria ir correndo, mas ia muito devagar; pedia sempre um sorvete de chocolate, que ia lambendo pelas beiradas, de olhos bem abertos, com medo de que, subitamente, o doce se desmanchasse ante seus olhos. A mãe achava graça, dizia que ia tomar o sorvete, ria muito – como ele tinha saudade daquele riso! Tentava deter o tempo, mas ele, até em sua memória, vinha apagando certos rostos e olhares, silenciando algumas palavras, embaçando seus olhos. Lembrava-se de que a mãe ficara mais magra, tossia muito e seus olhos queimavam. A cada vez que voltavam do médico, ela vinha menor, encolhida em seu corpo débil, o riso cada vez mais raro. Um dia, se foi. Sua mãe, tão discreta, apenas silenciara de vez, os olhos fechados, vestindo seu vestido de passeio. O pai, abatido, segurara firme sua mão e, num choro sem lágrimas, abraçou-o fortemente. Dois dias depois, comunicou-lhe que, a partir daquele dia, ele teria que morar com a tia. O pai viria visitá-lo, de quinze em quinze dias. Desde então, não faltou a nenhuma visita. Levava-o ao mesmo parque, sentavam-se num banco, perguntava-lhe da escola, da vida, dava-lhe o dinheiro do sorvete e voltavam lentamente, porque já sabiam que as coisas não duram para sempre. Os olhos do pai foram ficando cansados, seu corpo envergara-se mais, quase todo o cabelo estava branco. E ele, rapagão, comunicou-lhe que iria parar de estudar, arrumar um emprego e alugar um cantinho para eles. O tempo, esse tecelão implacável, foi deixando aqui e ali seu traçado. Ele trabalhava como garçom; o pai, aposentado, vivia inventando pequenos consertos. Casou-se, teve filhos e, de repente, a casa ficou demasiado pequena para os gestos lentos do velho. Vez ou outra, o pai perdia seu olhar no nada, esquecendo-se das coisas a seu redor. Eram apenas três quadras, mas se abria um caminho infinito entre eles. Quando segurava o braço do velho pai com sua mão, sentia que seu próprio corpo curvava-se mais que o dele. A placa azul, meio desgastada, anunciava: Lar dos idosos. E isso era tudo. Chegara o dia do aniversário dele. Naquele dia, as horas demoraram a passar. Mas sustentou a ansiedade do tempo, a gravata borboleta e os fregueses indigestos com a esperança da noite que, certamente, viria. Quando o relógio apontou a meia noite, despiu-se do uniforme, da pilha de pratos e do odor de óleo da cozinha. Apanhou a bicicleta e pedalou como menino. Eram quinze para uma hora, quando desceu da bicicleta. Naquela noite especial não precisaria obedecer ao horário das visitas. Entrou e acenou para a recepcionista. Ajeitou a blusa, os cabelos e o coração. Foi andando pelo corredor já conhecido e empurrou a porta do terceiro quarto à esquerda. O velho estava cochilando, sentado numa cadeira ao lado da cama. Abriu os olhos sem sobressalto e sorriu um sorriso sem dentes. Ele aproximou-se, afagou seus cabelos ralos e beijou-lhe a testa. Em silêncio, estendeu-lhe o embrulho que cuidadosamente preparara. Os olhinhos do velho faiscaram. Tirou de dentro do papel verde um caminhãozinho de madeira. Os olhos dos dois encontraram-se, num entendimento sem palavras. Há muitos anos, no dia do seu aniversário, o pai lhe levara um caminhãozinho como aquele. A mão trêmula do velho afagou o brinquedo, num gesto cheio de circunstâncias. O tempo, finalmente, lhes dera uma pausa. Quando o enfermeiro veio apagar as luzes, encontrou-os ainda mudos, as duas cabeças geminadas, num abraço de pai e de filho. Minha modesta homenagem aos pais de Montes Claros. |
Por Ivana Rebello - 29/12/2015 11:23:22 |
Medalha de Mérito em Gestão Antônio Lafetá Rebello Há um quadro de Klee, intitulado Angelus Novus. Trata-se de um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos espantados, a boca e as asas abertas, o rosto voltado para o passado. As imagens que surgem ante seus olhos é para ele uma catástrofe sem fim, acumulando ruínas sobre ruínas, que são lançadas a seus pés. Essa é a metáfora desalentadora que Walter Benjamin confere à história. Mas é possível reposicionar o anjo da história, de forma que ele, sem perder de vista o passado, contemple serenamente o presente e projete um futuro. É possível apoderarmo-nos de uma memória tal como ela relampeja no instante mesmo de sua explosão e acontecimento. Todos sabemos que as raízes são territórios simbólicos, mas é preciso que lembremos que elas são, inevitavelmente, fundadores de outras ordens. Assim é essa Medalha Antônio Lafetá Rebello, criada pelo prefeito Ruy Muniz, em momento de invulgar inspiração. A efígie nela cunhada reflete uma dupla astúcia: homenagear um grande homem do passado, trazendo-o de volta à lembrança e projetar uma noção de futuro, a partir dos fragmentos, daquilo que pudemos reter e lembrar. Quando era menino, Toninho Rebello, nome com o qual seria conhecido, aboletou-se num carro de boi e subiu a serra, só pra ver a cidade de Montes Claros iluminada, à noitinha, no momento em que acendiam suas luzes. Esse olhar iluminado marcaria a forma como ele governaria Montes Claros, em duas gestões, ambas destacadas pelo uso eficiente e sério da coisa pública, pela determinação de construir e pela capacidade visionária, capaz de antecipar em décadas o perfil da cidade. Sua primeira gestão, entre 1967 e 1970, nascida de um consenso político, e de uma necessidade àquela época, deixaria marcas indeléveis à paisagem da cidade. 200 quilômetros de asfalto, que mudariam a paisagem da área central e de muitos bairros, antes marcada pela poeira e lama. Construiu redes de esgoto e águas pluviais, dois mercados, várias escolas e postos de saúde na cidade e na zona rural, o parque Municipal Milton Prates, além de privilegiar a limpeza pública e o cuidado das praças. O projeto de saneamento e urbanização de Toninho Rebello preparou Montes Claros para receber as indústrias, capitaneadas para a cidade pelos incentivos da SUDENE. Tudo isso, sem propagandas, sem ostentação e com comedimento. Essa gestão, aprovada plenamente pela população, seria suficiente para que ele fosse eleito, com maioria absoluta de votos, para prefeito da cidade, entre 1977 e 1982. Nesse mandato, seriam construídos: uma nova e moderna Rodoviária; um Centro Cultural, com teatro e biblioteca; a avenida Deputado Esteves Rodrigues, que cortaria a cidade de lado a lado, aliviando o trânsito na área central e mudando definitivamente a cartografia urbana da cidade; o grande lago de Interlagos, que fazia parte de um ambicioso e necessário projeto de amenizar a paisagem quente do sertão com grandes espelhos d´agua; várias lavanderias comunitárias e praças em muitos bairros; instalação de cinco mil postes de luz, entre outras coisas. Individualmente, uniu-se a um grupo de empreendedores e idealistas e trouxe a televisão para Montes Claros. Foram construções que, no conjunto, representaram seu projeto de amor a Montes Claros e sua inquestionável visão de administrador. Aos grandes homens e mulheres que hoje receberão a Medalha Antônio Lafetá Rebello, meus sinceros e comovidos cumprimentos. Não será qualquer um digno de ostentar comenda tão meritória. Vocês a mereceram pelo que são e pelo que fazem. Antônio Lafetá Rebello, agora imortalizado pela Medalha de Mérito, despiu-se, em vida, de toda honraria, publicidade ou grandezas mundanas. Mas o gesto do prefeito Ruy Muniz faz jus a um grande administrador e a um ser humano extraordinário. E esse gesto, excelentíssimo prefeito, foi digno de sua inteligência e de sua visão empreendedora. Não é sábio deixar que a história seja ruína e escombro. Esse seu gesto permite que o Angelus Novus, do célebre quadro de Klee, olhe firmemente para o futuro, sem perder de vista o passado. Parabéns pela grandeza e obrigada pela lembrança! E como última fala desta modesta filha de Montes Claros, retomo, juntamente com todos aqui presentes, a figura de Antônio Lafetá Rebello: manso, prudente, modesto, limpo no corpo e na alma, metido em camisa alva, olhando as luzes da cidade que verdadeiramente amou e sobre a qual gravou indelevelmente sua marca e presença. Nossa Montes Claros agradece. Ivana Ferrante Rebello. |
Por Ivana Rebello - 9/5/2015 20:29:57 |
Reforçando a opinião de outros muralistas; acabo de retornar do Mercado Central e realmente o estacionamento daquele logradouro virou propriedade privada dos ´olhadores de carro´. (...) Por essa razão também deixei de frequentar nosso mercado. Além disso, o estado precário do prédio atesta o (des) governo de sucessivas administrações em Montes Claros. Se comparamos a construção do mercado com a da rodoviária da cidade (bem mais antiga) veremos a diferença marcante. |
Por Ivana Rebello - 28/4/2015 19:01:57 |
1º colocado no Concurso Nacional de contos Cora Coralina - Ribeirão Preto- 2009. MÃOS DE DOCEIRA Ivana Rebello Aquela janela que já não abre parece um soldado de farda azul. Um frescor de árvores velhas abriga também um pequizeiro retorcido e triste. Posso ouvir alguns pássaros e ver um movimento de pequenos bichos no chão. Até uma borboleta cinza, para me dizer de imagens poéticas, acho que passou. Eu quero desgarrar-me do grupo, sentar ali n’algum cantinho verde, ouvir por instantes a eternidade do rio que passa. O rio. Um rio passa em borbulhas lentas. Não sei se limpo; hoje não se pode saber tudo. Mas a música do rio é ainda a mesma da minha infância, meus pés quase sentem o deslizar frio da água. O rio me canta. Deixem passar os outros. Eles não ouviram o som de flauta das águas. Sequer olharam os soldados azuis. Uma casa fechada deveria ser uma casa morta. Mas nela se juntam as redes de picumãs, caindo em cachos do telhado. Este telhado, decerto enegrecido perto da cozinha, espreitou anos a fio uma intimidade de gente. Um telhado tem segredos que ninguém sabe. Pequenos insetos tomaram conta de todas as frestas e os pardais se agasalharam na cumeeira. As paredes de adobe nunca foram muito lisas, têm dessas ondulações suaves, como os movimentos da vida. A parede da frente deixou em mim a sua marca de cal, uma carícia branca de vestido em minha roupa. Estou pronta para ouvir. Ela chega e se senta a meu lado. Uma mão pequena e rosada, emagrecida pelo tempo e cheia de veiazinhas bem finas afasta devagar os fios de cabelo branco que caem por seu rosto. Devagar a tarde se enche de uma espécie de luz pálida e até uma roseirinha desgovernada pelo abandono anuncia um perfume. Eu sei quem você é, eu penso, eu sei tudo sobre você. E minha memória busca os versos que eu recitei para os meus alunos naquela manhã de maio. Uma aluna me olhava surpreendida, uma boca incerta de adolescente pedindo mais, embora eu tivesse que recolher depressa o meu livro, com medo do seu espelho. Eu quase chorei, mas já não era tão fácil como antes. Era preciso ir, por isso deixei a menina com sua angústia. Eu já sabia que uma casa fechada falava. Eu queria ouvir, precisava ouvir, por isso fui afastando-me do grupo. Alguns me achavam meio esquisita com esse gosto de coisas velhas, iam apenas comentar ligeiramente. E seus passos apressados iam fazendo coro uns com os outros, passando pelas feiras em alegre mistura de cores e vozes. Eu já sabia. Por onde começar? Sempre tem um começo, é preciso ter um começo. Agora já ventava um pouco no quintal. Decerto as árvores também queriam falar. A mão de veiazinhas bem finas tinha uma força admirável: afastou o pesado cadeado, abriu com um movimento de rotina aquela porta. Um gato cinza dormia na poltrona. Num canto, um crochê mal iniciado se enrolava todo. O prato de azul pombinho estava num lugar de destaque na cristaleira, embora tenham tentado colar a sua borda quebrada. O remendo grosseiro deveria ter sido evitado. Aqui eu ouço o rio no final da tarde, ela me disse. Seus passos de velhinha faziam um chiado leve com o assoalho de madeira escura. Ela disse que o bolo de borralho era pesado e ruim; era um bolo econômico. E rira aquele riso de quem sabe mais do que diz. Eu também tinha uma saudade gulosa daquele bolo. Não sei quanto tempo ficamos ali, conversando. Ela numa cadeira alta, eu num sofazinho estampado. Ela usava meias grossas para aquecer os pés. Que frio era aquele? Um calor de coisas mornas me abraçava, n’algum canto da casa uma torneira pingava, pingava. Uma torneira sempre vaza numa casa. Alguma coisa está sempre escorrendo por nossos dedos, por nossos dias, por nossa vida. Um encantamento cortava o dia. As mãos se moviam com sabedoria de dedos. Ora apressadas, riscando o vazio com os desenhos do tempo, ora bem lentas, abarcando cada palavra. Quando era eu a falar, ela colocava as duas mãos em concha, uma dentro da outra, no mesmo gesto de acolhida. Eu achei aquelas mãos elegantes. Eram as mesmas que eu via no retrato da parede, mãos de uma senhorinha de olhos pretos, os cabelos recolhidos num coque bem esticado, uma única e pequenina jóia de família, um camafeu bordado, fechava a gola do vestido. Às vezes, ela sorria. Seu sorriso era econômico como o bolo de borralho, mas também guardava certas gulas. Ela disse que o bolo não, esse era para o café diário. Perguntou se eu queria doces. Eu conhecia aqueles doces de tantos sabores. Eu vivo de doces, ela disse. Faço do açúcar o meu tostão diário. Aquela casa sobre a ponte recendia a doces. O vento espalhara todas as amarguras, as coisas ácidas estavam plantadas no quintal dos fundos, onde os passarinhos faziam seus ninhos. Ela sabia fazer doces. Às vezes eles tinham rima e métrica. Ali, naquela cadeira alta, ela estava linda. A sua voz tinha um timbre de firme. Seu corpo delgado estava fresco de banho. Eu sabia que ela era feiticeira, fazia poções e remédios, encantava. Alguém sussurrara que ela vivera um grande amor. Ela tinha a força das amantes, o silêncio triste das esposas, a compaixão das mães. Ela era bonita com seu vestido de rosinhas pequenas. Ela acreditava que os cristãos não deveriam comer carne na quaresma, que o pão era alimento sagrado e se persignava à hora do Ângelus. Eu ri, dizendo que ninguém falava mais assim. Era estranho, ela tão jovem dizendo essas coisas, esse ar de gravidade. Foi assim aquela conversação que se estendeu por horas nunca contadas. Seu olhar vivo de mocinha completando os versos daquela tarde. Eu, finalmente, apaziguada em seus verdes. Numa casa velha de Goiás velho, numa conversa tão nova que ainda poreja em mim. Quando me despedi, o sol já estava longe e a noite ia estendendo de manso sua cor densa. Rimos muito. Rimos como duas mulheres. Lembro-me dela, acenando as mãos pequenas e finas, a cabeça delicada sustentando a ânsia de vida. Meu último olhar ainda a flagrou, saltitante, pulando pequenas pedras e entrando de uma vez na casa. Era uma menina. Fazia doces. Escreveu um poema em minha tarde. Seu nome: Cora Coralina. |
Por Ivana Rebello - 21/4/2015 16:01:53 |
Toninho Rebello: o livro e as pedras do tropeço Certa feita, quando Toninho Rebello se preparava para entregar mais uma obra a Montes Claros, alguém muito próximo lhe perguntou: Não vai por placa Toninho? Ao que ele respondeu: Placas? Para que placas? O que importam são as obras, não as placas. Nessa resposta de Toninho Rebello havia uma demonstração de humildade, uma consciência rara do verdadeiro papel do gestor e uma lição: a de que a grande riqueza do homem é o que ele faz com o seu sonho. E o sonho de Toninho era Montes Claros. Por que escrever um livro sobre Antônio Lafetá Rebello? Porque não há placas com seu nome na cidade de Montes Claros que ele administrou por 2 mandatos. E não há praças, não há bairro, não há ruas, não há nada que o lembre na cidade que ele amou. Assim como as casas velhas que caem, abandonadas, levando as lembranças dos montes-clarenses, a memória de Toninho Rebello estava se desfazendo. A ambição minha e de Jorge Silveira era a de lutar contra o esquecimento. Esquecer o passado é uma estratégia para se desvirtuar uma história; esquecer o passado é não se comprometer com nossa consciência social. E isso, sob todos os aspectos, é muito perigoso. Eu e Jorge temos a plena consciência de que nosso papel no livro foi pequeno e discreto. Fomos a mão do oleiro que revelou a forma daquilo que por si só era substância e riqueza. O nome Toninho Rebello fala por si só. Permitam-me, nesse momento, usar uma pequena metáfora. Quem anda pelas ruas de Berlim, na Alemanha, sente um pequeno obstáculo incrustado nas pedras de alguns calçamentos. Para não cair ou tropeçar, o caminhante é obrigado a se curvar levemente ante aquele pequeno obstáculo. Então, descobrirá que muitas pedras têm afixadas umas pequenas plaquinhas de metal, com o nome de um judeu morto pelo governo nazista, na segunda guerra mundial. Tratam-se das stolpersteines, cuja tradução em português é: pedras do caminho, obstáculos ou pedras do tropeço. Elas fazem parte de um projeto do artista plástico Günter Demnig e seu objetivo é que as pessoas tropecem, literalmente, na memória; que lutem contra o esquecimento e que, ainda que discretamente, façam uma reverência aos nomes do passado. Usei essa imagem porque é isso o que eu e Jorge Silveira pretendemos com a escrita do livro. Essa é nossa pedra do tropeço; a forma que encontramos de reverenciar a memória de Antônio Lafetá Rebello. Esse livro é um monumento a ele, um monumento de palavras. Assim como os passantes das ruas de Berlim, com ele nos curvamos em respeito e agradecimento ao homem que ele foi. Muitas histórias faltaram. Muitos se aproximaram de mim, após a leitura do livro, contando outras tantos episódios envolvendo Toninho Rebello. Talvez sejam elas a matéria para outro livro. Quem sabe? Estamos carecendo de uma boa imagem. Estamos carecendo de esperança. Ivana Rebello. |
Por Ivana Rebello - 7/4/2015 15:56:25 |
A PONTE DE TRAJANO Uma ponte de pedra rasga a paisagem da cidade de Chaves, de um extremo a outro, sobre o Tâmega. Trata-se da Ponte Romana ou de Trajano, constituída de arcos sólidos, edificada pelos romanos entre o final do século I e o início do século II, d. C.. Essa imagem evoca as passagens de margem a margem, incita às travessias de tempo e de lugares. Toda história começa assim, por meio de uma passagem, uma aventura, uma viagem. Um dia, minha filha pediu-me para contar a história do bisavô, o português Jayme Rebello. Posterguei esse enredo por alguns anos, na recolha silenciosa de sinais que preenchessem os vazios da memória e dessem vida e significado aos fatos. Era preciso empreender eu mesma a minha própria travessia, cuja ponte seria tecida de palavras, com as quais eu pretendia reconquistar o tempo e encetar a minha incursão ao passado. Lembrei-me dos artifícios comuns às estórias de fada, que permitiam dar vida às pedras, desencantando-as, insuflando nelas a maciez da língua. Foram esses os instrumentos primeiros do meu trabalho: a ponte de pedra que nos ligava a uma ancestralidade lusa, unindo continentes e histórias e a língua herdada de Camões, que aprendi a amar. Durante anos, na sala da casa do meu pai, vi uma fotografia de um homem sério, vestido de terno, cuja expressão emanava toda de um olhar firme e enérgico, provavelmente um olhar que não teria se curvado, tal a força que se desprendia daquele semblante. Vi esse olhar, com algumas variações, em vários tios e primos, assemelhados na conduta e no modo de construir a vida, que poderia aludir a uma herança genética ou a uma consciente imitação de um modelo que a todos nós sempre se afigurou positivo e decidido. Em alguns momentos da minha vida, esse olhar de “Rebello”, que eu também carrego, foi interpretado como prepotência e arrogância. Não é. Esse é o legado que sustenta as minhas palavras e engendra a nossa história: nosso berço foi talhado nas casas de pedra de uma longínqua aldeia portuguesa, cruzou de navio as distâncias que separavam dois continentes, dois mundos, duas culturas; fortaleceu-se na calosidade das mãos que não se negaram a nenhum tipo de trabalho. E construiu uma casa sólida. Na escrita dessas memórias, perguntei-me muitas vezes como é que um menino atravessou sozinho o atlântico, vindo aportar numa terra estrangeira de que nada conhecia, a não ser a promessa da fartura e de melhoria da vida, propagada pelos seus patrícios. Impressiona-me menos que tenha conseguido a prosperidade almejada. Muitos, por caminhos tortuosos ou retos assim o fizeram, de modo que o dinheiro, e todos os benefícios que ele proporciona, foi apenas uma circunstância; essa foi a lição aprendida na casa do meu pai. O que de fato intriga-me é que aquele menino de treze anos incompletos poderia muito facilmente ter-se corrompido, poderia ter escolhido o meio mais fácil. Escolheu o trabalho duro e honesto, iniciado pelo degrau mais humilde da longa escada que subiria. Não traiu seus princípios, não se prestou a acordos de interesse, não abriu mão de certos valores. Não se trata de arrogância, pois. A isso chamo de orgulho. Ou de amor, que é a força que, verdadeiramente, estrutura a família. Para a minha filha sussurro esse conto, que apanhei nas frinchas do tempo, consciente de que a vocação de mãe e de mulher é também a da tecelã de palavras, com as quais erigimos a nossa casa e passamos adiante as nossas experiências e os nossos sonhos. Nossa linguagem tem sido a voz que constitui o mundo. Esse é o gesto fundador do meu relato, com o qual tomo a sua mão e proponho atravessarmos a ponte. Agora, no entanto, tomamos o caminho inverso, rumo às terras portuguesas. Em meio à neblina do tempo, pergunto ao vento, à lua e às estrelas sobre mistérios inescrutáveis. O jovem coração da minha filha bate em descompasso de viagens. Muito além, semioculto nas névoas, espera-nos, do outro lado da ponte de Chaves, um menino português, de treze anos. (extraído do livro “A história e Jayme Rebello”, de Ivana Ferrante Rebello). |
Por Ivana Rebello - 17/3/2015 7:32:57 |
Carta a meu tio Não pude entregar essa carta ao senhor; entrego-a, no entanto a seus filhos e netos. Ontem, fui com minha filha mais nova passear no Parque Municipal Milton Prates, que foi construído em sua administração. Está descuidado, mas encanta a todos com suas árvores centenárias e sua bela lagoa. Era seu sonho encher Montes Claros de lagoas, com o intuito de arrefecer o forte calor da região com uma paisagem amena. O nosso passeio foi testemunha de um dos poucos recantos aprazíveis dessa tão sofrida cidade. Todo sonhador paga um preço muito alto, mas em contrapartida só os sonhadores transformam o mundo. Quando menino, você fugiu de casa para ver a cidade iluminada. Aquela luz, de alguma forma, inspirou-o a governar de forma clara e arrojada. Muito tempo passou. Estão ultrapassadas certas formas de agir, de um homem empenhar sua palavra ao outro e de nossos filhos saírem despreocupados pelas ruas. O mundo mudou de forma vertiginosa: e o progresso,como sabemos traz consequências benéficas e outras não. Montes Claros é a terra natal de muita gente de bem - e prezo que a memória dessa gente não se desvaneça no tempo. As casas podem cair, mas os efeitos dos grandes homens não podem transformar-se em ruínas. Este livro é para aqueles que não o conheceram, e que ouvem falar o seu nome. Este livro é para a geração de nossos filhos e para os filhos e netos de nossos filhos, que não tiveram a sorte de conhecer Toninho Rebello. O senhor era modesto demais para aceitar elogios, mas, em contrapartida, foi bom o suficiente para apaziguar diferenças. Não foi um mito - nunca quis ser. Se hoje o tratam assim, e alguns ainda se debatem na tentativa de destruir sua imagem, é porque Montes Claros, salvo algumas exceções, foi abandonada à própria sorte. Alguns dos que o procederam não souberam ou não puderam construir o próprio retrato. Eu também amo Montes Claros. Desejo que ela seja governada com dignidade, seriedade e respeito. Acho que todos os montes-clarenses verdadeiros assim o pensam. Quando eu passeava no parque com minha filha, contei a ela a emoção da menina que eu fui, quando estive ali pela primeira vez, levada pelas mãos de meus pais, no dia da inauguração. Era mais um presente que sua administração dava à cidade, no dia 03 de julho. E falei de como o senhor estava alegre ao entregar aquela obra à nossa gente, no dia do aniversário da cidade. Os olhos dela brilharam, quando me perguntou: Ele virou anjo, mamãe? Ri. Na minha mente, está muito vívida sua imagem: sorriso aberto, grandes olhos tristes, mãos no bolso, fiscalizando alguma obra. Difícil imaginá-lo como anjo, mas certamente estará nalgum lugar bonito do céu, rodeado de José Gomes, Marão, Hermes de Paula, Dr. Santos, vovô Jayme e outros homens de bem, ouvindo João Chaves cantar e contando histórias de Montes Claros. Com carinho e muito orgulho, Ivana (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 14/3/2015 7:12:22 |
A casa e o mercado Quando Toninho Rebello deixou a prefeitura, em 1982, estava cansado, muito cansado, e seu cansaço não era proveniente do trabalho, pois disso ele nunca se queixou. Havia deixado o município sem dívidas, com dinheiro em caixa para dar continuidade às obras do programa Cidade de Porte Médio, projeto que ele e Humberto Souto sonharam. Seu sucessor recebeu uma cidade limpa, bem cuidada, visivelmente transformada por uma administração corajosa, progressista e honesta. As eleições municipais foram duríssimas. As circunstâncias políticas eram todas favoráveis à mudança; quase todo o país ansiava pelo fim da Ditadura Militar, conforme Jorge Silveira tão bem relata neste livro. Mas Toninho Rebello não esperava a ferocidade de ataques que se abateu sobre ele e seus familiares. Apenas politicagem rasteira, maledicências e falta de decoro. Bem que tentaram; investigaram de todos os lados, reviraram sua vida pelo avesso e nada encontraram de desagravo. No entanto, ataques e calúnias circulavam por alguns órgãos de imprensa. Felizmente, parte do povo de Montes Claros, gente que ama a cidade e que conheceu Toninho Rebello, fez e ainda lhe faz jus. Mas Toninho Rebello morreu magoado. E todos nós que conhecemos sua retidão e caráter sofremos por ele. Desejando recolher-se, finalmente, junto a família, tomou algumas decisões que, hoje, soam quase premonitórias. Teria ele pressentido a proximidade da morte? E bem verdade que o coração havia lhe enviado alguns perigosos avisos; adoeceu, foi hospitalizado e safenado. No entanto, sabíamos que sua dor maior era outra. Para um homem de sua têmpera, os ataques a sua honradez foram mortais. Decidiu, portanto, fazer a divisão de seus bens em vida; o inventário foi feito pelo Dr. Sebastião Melo: 50% de seus bens foram passados para os filhos e os outros 50%, a nua propriedade, ficaram para seu usufruto. Ele queria garantir o dinheiro para alguns avais que tinha dado, inclusive para a televisão, de que foi grande acionista. Transformou as suas fazendas na Luciana Agropecuária, empresa forte, familiar, especializada em gado Nelore PO; a família vinha se especializando há tempos na criação de gado de raça, investindo na melhoria genética das reses. Como os filhos já estavam casados e os netos cresciam e nasciam, segundo o preceito bíblico, ele desejou acercar-se de todos, talvez numa forma compensatória pelos anos de dedicação quase integral à prefeitura. Assim, transformou o terreno onde era sua casa, "a fazendinha", em um aprazível condomínio familiar. Construiu para si uma casa pequena, pois, depois de tantos anos com a casa cheia de filhos, somente ele e Marcolina ali residiriam. Os demais filhos construíram suas casas, cada uma com seu jeito e estilo, mas todas voltadas para a rua principal, em cujo nome Toninho Rebello quis homenagear seu sogro: Jacinto Ataíde. Ruas asfaltadas, arborizadas, tornou-se ali um lugar de descanso e alegria, onde seus netos brincavam e seus filhos estavam mais perto de si. Sempre gostou de gente, incentivava os almoços em família e as comemorações. O prefeito que o sucedeu, entretanto, incomodado com essa paz familiar ou talvez com o peso de seu nome, o qual nunca conseguiu denegrir, produziu mais uma peça de delírio político, acusando Toninho Rebello de ter asfaltado as ruas ao lado desse condomínio sem licitação. Sim, ele de fato o fizera, sem licitação e com dinheiro do próprio bolso, pois as terras ali eram dele! As perseguições aumentaram. A construção do novo mercado municipal de Montes Claros foi uma implicância gratuita: visava trazer movimento e barulho à vizinhança de Toninho. O mercado foi construído; Toninho estoicamente ergueu os muros em volta das casas dos seus - fechou o condomínio. Onde hoje é o restaurante municipal foi lote pertencente a Anamélia e a Cristina, suas filhas: o então prefeito o desapropriou e não pagou, como de praxe. Alguns anos depois,quando Mário Ribeiro foi prefeito, pagou o devido. Toninho Rebello, então, doou ao município as ruas que eram suas e ele mandara asfaltar. Mário Ribeiro e Toninho foram grandes amigos, compadres (Toninho foi padrinho de uma filha de Mário, e Mário era padrinho de Cristina Rebello) e adversários políticos. Respeitaram essa amizade e compadrio, independentemente de algumas escolhas contrárias. Contaram-me que, quando foi prefeito, e incomodado com o recolhimento do amigo, Mário ligou para Toninho, chamando-o para ir com ele, fiscalizar as obras da prefeitura. Quando Toninho Rebello morreu, Mário Ribeiro, que era o prefeito decretou luto oficial por oito dias. Quanto ao mercado, e com o condomínio fechado, os familiares de Toninho até gostaram, ao final, da inesperada vizinhança. Todos são muito simples e aprenderam com o pai a gostar de gente humilde. E Toninho foi levando sua vida tranquila, encontrando-se com amigos no bar Cristal, no Quintal ou no bar do Zezinho, onde pedia ao garçom "coca-cola". Todos já sabiam que era uma mistura de coca com cachaça, sua bebida predileta. Às vezes, ia a Mirabela comer carne de sol ou dobradinha. E construiu também suas igrejinhas, como bom católico que era: doou terreno e construiu a Igreja Santa Clara, no bairro Santa Laura, em Montes Claros. Também construiu uma capela no povoado de Poço Novo, próximo às suas terras. Sempre acreditou que a religião ajudava às pessoas. A religião não o afastou da maçonaria. Foi maçom, como o pai Jayme Rebello, e maçom graduado. A Loja Deus e Liberdade, situada na Avenida Mestra Fininha, foi construída em terreno doado por ele, que também doou as cadeiras do templo. Hoje ali também funciona uma loja que se chama Antônio Lafetá Rebello, proposta iniciada por seu genro, também maçom, e filho de seu grande amigo José Gomes. Toninho se foi, naquele início de tarde de novembro, de 1992. A casa e o mercado ainda estão lá, mas muitas coisas na cena política de Montes Claros mudaram. Quem entra no condomínio da família de Toninho sente uma indescritível sensação de paz, pois suas ruas, suas árvores e suas casas ficaram, como testemunhas de um homem de bem e parte de sua história. José de Alencar termina a obra Iracema com a morte da bela indígena, lançando um lamento sobre a terra brasileira: Tudo passa sobre a terra... A crença de que certos fatos e certos homens não podem passar uniu Jorge Silveira a mim, na escrita deste livro. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 9/3/2015 14:27:17 |
Parente de prefeito Eu tinha seis ou sete anos de idade, quando Tio Toninho foi prefeito de Montes Claros, na primeira gestão. Lembro-me pouco, mas o suficiente para dizer que o prefeito estava mais distante de nós do que todos supunham. Até parecia que eram duas entidades diferentes: uma era o tio alegre e brincalhão, que nos pegava no colo, virando-nos de pernas para o ar ou aquele que nos fazia correr assustadas, pois revirava as pálpebras inteiramente, deixando à mostra somente a parte interna. Ou outro era o "tio prefeito", o tio proibido e inacessível. Já haviam nos contado a história (que comprovei mais tarde ser verdadeira) que Tio Toninho era um " prefeito zumbi" . Com seu afã de bem administrar e de fiscalizar, acordava às 5 horas da manhã e dava um passeio pela cidade, para ver como andavam as coisas. Certa feita, num desses passeios pela madrugada, flagra o guarda da Praça Irmã Beata, dormindo tranquilamente, com um boné cobrindo-lhe os olhos. Sorrateiramente, aproximou-se, tirou o boné do pobre coitado, e seguiu direto à prefeitura. Pouco depois, manda chamar o funcionário, perguntando-lhe, com os olhos brilhando de pura gozação, como andava o serviço, se tudo estava bem e se havia acontecido alguma coisa anormal. O pobre, com medo de ser advertido, balbuciou que tudo estava bem, que nada ocorrera. Meu tio, rindo, apresenta-lhe o boné e diz: Como é que pode um guarda noturno dormir à noite? E se fosse alguém querendo destruir a pracinha? Houve desculpas de um lado, advertências comentando que um homem como aquele só poderia ser doido. Acho que ele era. Doido por trabalho. Morávamos ali na rua Lafetá, as meninas de Roberto e os meninos de Fábio: fomos vizinhos durante a primeira infância e muitas são as boas lembranças que guardo dessa época. Estudávamos à tarde, por isso, uma boa saída para nossas mães sempre atarefadas, com seis filhos cada uma, era enviar-nos à Praça da Matriz, bem perto de onde morávamos, para os brinquedos infantis. Aquela praça constituía para todos nós um mundo de magia e encantamento indescritíveis. Eram partidas disputadíssimas de porta-bandeira, pique-esconde, jogos de maé, de meias velhas, cheias de areia, que atirávamos com força e vontade contra nossos adversários. E, às vezes, as bolas iam parar no meio da grama. Aí começava nosso tormento: quem iria pegar a bola? Explico: por aquela época o jardim da Praça da Matriz era cuidadíssimo. A grama verde, ladeada por belas e variadas roseiras, era severamente vigiada por um guarda municipal. Se o guarda pegasse um de nós pisando a grama, ele decerto nos levaria para o prefeito, que nos prenderia, como nos fizeram acreditar. Na nossa mente fantasiosa de crianças, o prefeito era uma entidade distante e severa, que punia quem quebrava as regras. Nunca vinculamos sua imagem com a de nosso tio brincalhão. . No seu segundo mandato, eu já era mocinha e tinha entendimento diverso das coisas, mas em nossa família o comportamento face ao cargo do meu tio era o mesmo: parente de Toninho Rebello não podia chegar perto da prefeitura! Assunto proibido e indiscutível. Em certo fevereiro, época de carnaval, eu e minha irmã Cláudia, fomos à Avenida Coronel Ribeiro assistir aos desfiles dos blocos de carnaval. Havia carnavais em Montes Claros na época de Toninho Rebello, sim, pois ele incentivava os folguedos que eram bem familiares. Eu e vários primos já desfilamos em um famoso bloco, que se protegia sob lençóis brancos, cantando e dançando, de uma forma tão salutar e inocente, que soa quase ingênua, para os dias de hoje. Mas naquela noite, queríamos somente assistir à grande festa popular. Chegamos, infelizmente, tarde. As arquibancadas estavam lotadas, restando apenas alguns lugares no camarote destinado às autoridades. Mais obediente, ia fazendo menção de voltar à casa, pois sabia que aquele camarote era impensável: nem tio Toninho gostava de ficar ali. No entanto, Cláudia, minha irmã, mais ousada que eu, chegou rente a um segurança loca e disse: Você vai ter que nos deixar entrar. Nós somos sobrinhas do prefeito! Fiquei horrorizada. Ela ousara pronunciar palavras proibidas! Vermelha, constrangida como se tivesse sido pega em falta grave, tentei puxar minha irmã, dizendo-lhe que contaria tudo a papai. O segurança, talvez compadecido de minha vergonha, disse, rindo, que poderíamos subir. Não subimos, preferimos ficar lá embaixo, por trás do cordão do isolamento, vendo os blocos passarem. Quando tio Toninho assumiu a prefeitura, passou o gerenciamento de suas fazendas ao filho mais velho, Jayme Rebello Neto. Dedicou-se integralmente à administração de sua querida cidade. Se Jayme Neto precisasse de uma assinatura de seu pai, e ele estivesse na prefeitura (e quase sempre estava), ele deveria telefonar, solicitando sua presença fora da prefeitura. Nem ao filho ele autorizou chegar perto do paço! Aquele era um hábito que se tornou corriqueiro entre os familiares de Toninho Rebello. Para todos nós era essa a regra e a única forma lícita de um gestor comportar-se. Mal sabíamos nós que Montes Claros, anos depois, transformar-se-ia num belo e atraente cabide de empregos e uma ótima plataforma para eleger parentes de prefeitos. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 6/3/2015 08:37:36 |
Amor a Montes Claros Meu prezado leitor, Toninho nos deixou, mas o que guardo eternamente dele é aquela cena no calçadão da Minascaixa, no meio da galera, com velhos amigos, velhos eleitores e admiradores, como, por exemplo, Nivaldo Maciel e Márcio Cardoso. Com toda sua fama de grande prefeito, rico e de nossa alta sociedade, misturava-se aos demais. Ângelo Soares Neto. Um dos maiores enganos acerca de Toninho Rebello é a tentativa de vinculá-lo aos grupos políticos com os quais se uniu. Ele lidou com igual sobriedade com diferentes correntes políticas e partidárias; se fosse para o bem de Montes Claros, não importava o partido a que alguém se ligasse. Ele sempre privilegiou as pessoas, não a ideologia partidária. Sei que hoje é muito difícil entender essa forma de pensar. Mas era exatamente como foi. Exemplifico: Toninho Rebello teve como porta-voz, na época de seu segundo mandato como prefeito, Augusto Vieira, o "Bala Doce", que confessadamente partilhava de ideologias diferentes daquelas defendidas pelo partido ao qual Toninho era filiado. Não encontrei melhor forma de descrever tal relação, a não ser por meio das palavras do próprio Augustão: Há pessoas com as quais tive o prazer de conviver com mais intensidade e que marcaram profundamente minha vida. Uma delas foi Antônio Lafetá Rebello (Toninho). [...]. No final de 1969, retornei a Montes Claros. Era o último ano de seu primeiro mandato como nosso prefeito. A ditadura se tornara mais cruel ainda depois do AI-5, de 10 de dezembro de 1968. O ditador de plantão era o General Médici, o do "milagre brasileiro", o do "ninguém segura este país", o do "Brasil, ame-o ou deixe-o." Toninho encerrava seu primeiro mandato e, de cara, abracei a campanha de João Carlos Sobreira para sucedê-lo, principalmente porque a turma do então MDB defendia o Plano Diretor elaborado em seu primeiro governo. Parecia que nossa campanha era do próprio Toninho, face às ideias que defendíamos nos palanques. Se esse plano, de cuja elaboração - parte institucional - participara, assessorando meu ex-professor de Direito Administrativo, Paulo Neves de Carvalho, tivesse sido executado, com a construção dos eixos Norte-Sul e Leste-Oeste, minha terra não padeceria hoje de seus praticamente insolúveis problemas urbanísticos. [...]. O clamor popular pela volta de Toninho à Prefeitura era imenso. Eu o percebia pelo contato direto que mantinha com o povo no exercício da advocacia, na universidade e na militância do esporte. Toninho resolveu candidatar-se. A pequena turma da esquerda de Montes Claros aliou-se a ele. Afinal era ele o candidato mais bem dotado de ideias e práticas democráticas, que tinha profundas raízes libertárias e, portanto, nosso aliado natural. Os partidos eram apenas dois, impostos pelo arbítrio: ARENA, situação, e MDB, oposição. Mas a lei eleitoral permitia sublegendas. Resolveram então criar mais uma, na ARENA, para abrigar a nova candidatura de Toninho a prefeito. A política municipal tem razões que a própria razão desconhece e muitas vezes nada tem a ver com a nacional. [...]. Toninho fazia ponto na alfaiataria de Elzino, na rua Simião Ribeiro, onde sempre nos encontrávamos. Batíamos longos papos sobre o país, a cidade e futebol. Numa tarde do verão de 1976 ofereci-lhe meu apoio. Ao agradecer disse: - Você será um dos meus vereadores. Perplexo, respondi que não dava para entrar para a ARENA e ele argumentou que esta minha posição era radical, pois dentro de uma sublegenda do próprio partido da ditadura eu poderia continuar lutando pela redemocratização do país. [...] Pois bem, Toninho era de certa forma um guerreiro helênico. Exercitava como ninguém a arte de julgar, a arte do bom e do justo. Nada decidia sob pressão e quando o fazia era dentro de implacáveis critérios, o principal deles o interesse coletivo. Não era maniqueísta ou falso moralista. Entendia o ser humano concretamente, com suas virtudes, defeitos e limitações, sem jamais distinguir uma pessoa de outra ou humilhar alguém. Tratava todo mundo sob o crivo da igualdade da fraternidade. Era extremamente leal e franco. Dizia que a vida era uma conta corrente em que se contabilizavam nossos erros e acertos. Esperava que no final da sua a lista dos acertos superasse a dos erros. Esse kriterion o levava a antever, com maestria ímpar, quando era procurado para vantagens pessoais ou não. Com a mais fina educação e mais absoluta serenidade dizia à pessoa o porquê da decisão contrária a de seus interesses, fosse ela quem fosse. Às vezes, é preciso recorrer às palavras alheias, pois delas vem uma verdade que pareceria suspeita a um narrador que tem, como eu efetivamente tenho, laços de sangue e de afeto com o narrado. Li muito e ouvi muito; quase sempre as palavras sobre Antônio Lafetá Rebello foram de admiração e respeito. Ele partilhava da amizade pessoal de Mário Ribeiro, de quem era compadre, mesmo que não concordassem nos assuntos ideológicos. Dois homens de bem sabem distinguir as coisas. Uma minoria do povo de Montes Claros nunca entendeu seu jeito de governar: confundiram retidão e seriedade com prepotência, mas felizmente, o tempo e a memória dos bons montes-clarenses têm-se encarregado de desmenti-los. Ele também não acobertou aqueles que se aproximam do poder, qualquer poder, em nome da vantagem pessoal e de benefícios particulares. Ele soube, como poucos, distinguir o bem público do privado. Já ouvi muita conversa fiada e mentira. Disseram que ele asfaltou a cidade porque foi dono da Pavisan, empresa que se encarregou das primeiras e grandes transformações urbanísticas de Montes Claros, governada por ele, em rumo ao progresso sonhado. Mentira. Disseram que ele fez a "Avenida Deputado Esteves Rodrigues" em proveito próprio: mentira. Pobre Montes Claros! Hoje a cidade se ressente desse pensar miúdo e rasteiro! Já ouvi muita gente discutindo o "mito" Toninho Rebello. Ele deve estar, em algum lugar, com aqueles olhos enormes e tristes, olhando divertido para essa gente. Toninho Rebello foi o homem mais simples, bom e humilde que conheci! Tentaram denegrir sua imagem. Seu sucessor imediato fez publicar em um jornal que, após a posse de seu secretariado, faria publicar um "relatório bomba", em que tiraria a máscara de Toninho Rebello. Estamos até hoje à espera de tal relatório. As bombas vieram, de fato, mas sob a forma de escândalos administrativos, políticas de favor, negociatas escusas, péssimas gestões que nada têm a ver com Toninho Rebello. Montes Claros, nossa cidade querida, envelheceu, triste e machucada, ferida por administrações populistas. E, como era de se esperar, as bombas estouraram do lado de quem lhes acenderam os estopins. Eles que se esfalfem em apagá-las. É melhor que a Montes Claros que eu sonho para meus filhos se veja por meio de outra imagem. José Geraldo Gomes, filho de um amigo de infância de Toninho Rebello, José Gomes, e genro, porque foi casado com Vera Lúcia, a filha mais velha de Toninho, relatou-me uma cena, testemunhada por Virgínia de Paula, filha do médico e escritor Hermes de Paula. Certo dia, andando pelas proximidades da Praça da Matriz, deu com dois senhores muito graves, sentados num banco, chupando pirulito e fazendo planos para Montes Claros. Seus nomes: Dr. Hermes de Paula e Antônio Lafetá Rebello. Espero que Montes Claros não se esqueça de quem verdadeiramente a amou. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 27/2/2015 16:54:01 |
Um retrato de família Apenas um retrato na parede, mas como dói! Carlos Drummond de Andrade Há na memória de todos, uma tarde de Maio, em que brisa amena suaviza a dureza do sertão. Ou pode ser uma noite de Outubro, em que o calor de verão parece fazer colar a roupa no corpo e nenhuma folha de árvore se mexe, com a falta de vento. Em compensação, as mangueiras se curvam, cheias de frutos maduros, numa oferenda simples e generosa, que se repete todos os anos. Não importa a data, pois as datas são sempre imprecisas. Todos se lembram, no entanto, do dia em que posaram para aquela foto, o pai e a mãe ainda tão jovens, rodeados de todos os sete filhos, à frente da casa em que viveram por muitos anos. Antônio Lafetá Rebello e Marcolina Ataíde Rebello e seus sete filhos: Jayme, João, Marco Antônio, Jacinto, Vera Lúcia, Cristina, Anamélia. Moraram durante quase toda a vida na rua Marechal Deodoro, algumas ruas abaixo da Igreja da Matriz Nossa Senhora e São José. Era uma casa ampla, de grandes janelas e portas, sólida, simples e forte, como todas as construções que ele fez na vida. Lembro-me de que ela tinha as paredes claras, móveis enormes de boa madeira, sofás de couro, uma ampla cozinha, onde Marcolina esmerava-se nos assados e doces. Seu triunfo culinário era um pudim de leite, enorme e aerado, que cheirava a caramelo, sempre muito disputado nas festas de família. O quintal constituía as delícias de qualquer criança: ia de ponta a ponta de um quarteirão a outro, cheio de árvores frutíferas horta de verdes mestiços e muitos, muitos bichos, entre os quais se destacava mais de uma dezena de cachorros, uma vaca leiteira, galinhas caipiras e até um cavalo eu me lembro de te visto lá. Para mim, ali era um paraíso a que eu chamava de "fazendinha". Todos os que lá chegavam eram sempre muito bem recebidos. Havia sempre um café, biscoitos, o sorriso calmo de Marcolina e a gentileza espirituosa de Toninho, pois o humor era uma de suas características mais marcantes. Havia paz, força e disciplina naquela casa. Toninho Rebello foi pai extremamente amoroso e muito exigente com os filhos. Segundo Anamélia confessaria: Meu pai morria de medo que a gente desse errado na vida... Impossível que daquela casa saísse alguém errado. Eram filhos de pais dedicados, tão íntegros na vida familiar quanto o foram socialmente. Nasceram de um casamento que se pautava pelo respeito e pelo cuidado com o outro. Rígido, o pai cobrava responsabilidade e aplicação nos estudos - queria que os filhos se dedicassem ao máximo em tudo o que faziam. A preocupação de deixar os filhos encaminhados era tanta que, além de tudo, legou, a cada um deles, um lote no cemitério. A mesa de refeições, momento em que todos se reuniam, Toninho aproveitava-se para dar seus proverbiais conselhos: Trabalha, que o dinheiro vem como consequência... Outra frase que repetiria sempre, e que parece ter servido de inspiração para a criação de seus próprios filhos, foi, certamente, o mote daquela família: Ensinem seus filhos a viverem como pobres. De fato, desconheço outra família que, sendo tão rica, acostumou-se a viver sem luxo e ostentação. A sua casa reverberava o trabalho honesto, os hábitos comedidos, uma simplicidade hospitaleira e frequente, pois Toninho Rebello, a despeito do ar sério e da aparência às vezes carrancuda, era um homem que gostava de se cercar de pessoas, principalmente das mais humildes. Manifestava grande pena das viúvas, achava que eram desamparadas e não foram poucas as que auxiliou, sempre anonimamente, e seguindo um velho preceito que era também de seu pai: O que faz a mão de um homem, a outra não precisa saber. Homem público, rico, bem-sucedido em tudo o que fazia, Toninho nunca perdeu a humildade, uma pungente e verdadeira humildade, que só é possível entre os grandes. Sempre respeitou e honrou aquela que escolheu para companheira de vida. Preocupava-se com ela, com seu bem-estar e sua felicidade. Às vezes, ligava para casa e dizia à esposa: Prepare-se, vou levar umas quarenta pessoas para almoçar... E não houve um só instante em que ela dissesse não a seus apelos. Enquanto ele trabalhava incansavelmente, ela lhe garantia, em casa, a serenidade necessária para os inúmeros apelos que a vida pública lhe exigia. Sabia que o marido adorava receber amigos, sua casa vivia constantemente cheia de gente. Às vezes, um grupo grande ali se reunia, para beber, comer e cantar modinhas de João Chaves. Marcolina, que adorava música, saia vez ou outra de seu discreto papel e integrava o coro de cantores. Em contrapartida, ele procurava agradá-la. Conforme confessaram seus filhos: Papai fazia tudo o que mamãe queria. Além de preocupar-se muito com sua própria família, Toninho Rebello adotou a família da esposa, que o adorava. Sobrinhos e primos de Marcolina viam-no como um parente e um exemplo. Nas férias, o casal ia para a fazenda, com os filhos. Aquelas férias deixaram muitas saudades nos filhos de Toninho Rebello, pois ele tinha um modo muito especial de fazer os acontecimentos corriqueiros se transformarem em grandes eventos. Festejava tudo o que construía, reunindo os filhos, esposa e funcionários para as "grandes inaugurações": o alicerce da casa que estava construindo, um curral novo que fazia, tudo ele comemorava. No dia da inauguração de Brasília, a nova capital do país, Toninho também inaugurou um trampolim que mandara construir na represa, em sua fazenda, para deleite dos filhos. Ele sabia dar às coisas cotidianas o tom das coisas grandiosas. Foi também um construtor de mirantes, pois era um homem que queria enxergar além do horizonte. Em todas as suas fazendas havia uma construção bem alta, toda em madeira, com um pequeno telhado, que tinha por finalidade proteger as pessoas do sol inclemente do sertão. Quem se aventurava a subir pela longa e quase vertical escadaria, podia ver a grande extensão de suas terras, os capinzais verdes entrecortados de enormes ficcus italianos, árvores que davam frescor e alento à paisagem do agreste, e as longuíssimas filas de gado branco, rumando vagarosamente para os bebedouros. Grande pecuarista, produtor de gado nelore, conhecido muito além das fronteiras de Minas Gerais, tinha verdadeiro prazer em estar com seus funcionários, seus vaqueiros, com os quais tinha um cuidado quase paternal. A bondade com que tratava todos os que trabalharam para si foi testemunha de pungentes homenagens, durante seu velório, o que desmente integralmente aqueles que insistem em chamá-lo de coronel". Nunca ninguém conseguiu identificar uma senhora an^nima que, saindo da multidão que se perfilava na Igrejinha do Rosário, para o adeus final ao ex-prefeito, achegou-se rente ao caixão, levantou o filho pequeno que trazia consigo e disse, em voz alta o suficiente, para que os que ali se encontravam a ouvissem bem: Eis o retrato de um homem honesto! Se ele pudesse interferir, certamente o teria feito, naquela hora. Um de seus lemas era: Honestidade não é virtude; é obrigação. E se foi exigente ao extremo com os filhos, a chegada dos netos e o tempo - esse poderoso senhor - tornou mais terno seu coração. Já aposentado, gostava de ver a casa cheia dos filhos de seus filhos, por isso, havia em seu escritório uma gaveta cheia de caramelos e chocolates, para atrair os netos. Segundo ele: Menino não gostava de gente velha... Organizava pequenos torneios entre eles, incentivava os estudos e as viagens. Era sua crença que as viagens ensinavam muito, alargavam as ideias, ampliavam as perspectivas. Lembro-me de uma ocasião em que estava em viagem a Alemanha, juntamente com um grupo de prefeitos de cidades de porte médio do Brasil, para fazer cursos. Lembrou-se, ainda dessa vez, de provocar minha mãe, uma legítima descendente dos Peres e, portanto, amiga das festas e das celebrações. Enviou-lhe um cartão postal, curto e bem-humorado: Marília, aqui está pra você: três festas por dia! Uma das suas manias era provocar mamãe, mas todos sabíamos que ali havia, sobretudo, uma admiração mútua. Mamãe considerava-o um homem exxtraordinário. Aquele velho retrato amarelou. O tempo passou, arrastando consigo as pessoas, modificando a paisagem, os rostos, Sequer aquela casa existe mais. A cidade mudou, o mundo mudou. Aqueles meninos de Toninho e Marcolina se fizeram homens e mulheres, casaram-se, tiveram filhos e netos... Três deles se foram precocemente: Jayme Neto, João, Vera Lúcia... Estão em algum lugar, onde ficam os justos e bons, perto de seu pai e sua mãe. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 26/2/2015 11:28:48 |
O casamento Toninho era desportista. Foi faixa preta de judô, jogador de vôlei e de basquete, incentivador do futebol local e aviador. E foi o esporte que o aproximou daquela que seria sua companheira por 48 anos, Marcolina Ataíde, filha de Jacinto Ataíde e Augusta Amélia Ataíde. Segundo José Gomes: Marcolina era uma menina que mais parecia um bibelô, lourinha, de alegres olhos azuis. Ele frequentava a praça de esportes e lá conheceu a jovem professora de natação, Marcolina. O que vou aqui relatar foi lido por mim, em reportagem especial sobre Antônio Lafetá Rebello, publicada no extinto Jornal Do Norte, no dia 15 de dezembro, de 1992, após sua morte, portanto. Segundo Águeda Ataíde, o casamento dos dois tem suas raízes na histórica Diamantina, mais precisamente no Colégio Nazaré. O avô de Marcolina, Dr. Antônio Augusto Ataíde, era muito amigo do avô materno de Toninho Rebello, major Antônio Francelino Lafetá, de Coração de Jesus. Suas esposas, respectivamente, Jacinta Barroso Moreira e Maria Leopoldina Chaves de Queiroga, foram colegas e amigas, em Diamantina, estendendo essa amizade para a vida adulta, quando já eram senhoras e avós. Conforme se sabe, houve um breve período em que Toninho residiu na casa da avó materna, Dona Quita, conforme a chamavam. De vez em quando, as avós se encontravam e, como era de hábito naqueles tempos, ficavam articulando o casamento dos netos. Passaram os anos, e o destino resolveu reuni-los, já em outras circunstâncias. O então prefeito da cidade, o Dr. Santos, responsável pela construção da Praça de Esportes, fez com que algumas pessoas da cidade fizessem treinamento na capital Belo Horizonte, no Minas Tênis Clube, para serem técnicos de natação na praça. Marcolina foi a Belo Horizonte, especializou-se e se tornou uma das primeiras técnicas femininas da cidade. As circunstâncias aproximaram aqueles dois jovens, amantes dos esportes. Começaram o namoro ali, na Praça de Esportes, como uma dezena de outros casais de Montes Claros. Durante o namoro, Toninho foi convocado a servir como aviador nas Forças Expedicionárias Brasileiras, na Itália, o que deixou a jovem namorada desolada. No entanto, ele acabou sendo dispensado do serviço e retornou a Montes Claros. Em 15 de janeiro, de 1944, Toninho e Marcolina casaram-se, na antiga igreja do Rosário. Foi o próprio Toninho quem escolheu o local do consórcio, na igrejinha próxima à casa de seus pais, onde passou a infância e adolescência. Foi uma união que durou 48 anos e da qual nasceram sete filhos. Durante toda a vida estiveram juntos, companheiros e amigos. A jovem professora de natação abdicou de seu ofício para criar os filhos do casal e garantir ao arrojado marido a tranquilidade necessária para ir atrás de seus sonhos. É bem verdade o que dizem: que todo grande homem é sempre acompanhado de uma grande mulher. Na sua simplicidade e discrição Marcolina soube ser grande como só o são as mulheres que, doce e sabiamente, sabem honrar sua casa e ser guardiãs dos sonhos de dois. Somente se separaram no dia 10 de novembro, de 1992, quando Toninho faleceu. Antes, porém, havia recomendado à mulher que fosse velado ali, na Igreja do Rosário, local onde havia se casado. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, lançado em Montes Claros na noite de 25 de fevereiro) |
Por Ivana Rebello - 20/2/2015 8:10:06 |
O sonho de voar Os homens de seu tempo dizem que foi ele quem subiu intrepidamente numa longa escada e colocou o sino da Catedral de Montes Claros, construída por Chiquinho Guimarães. Dois amigos o ajudaram, mas, infelizmente, não pude encontrar alguém que me dissesse o nome desses amigos. O caso fica como mera curiosidade e destaca a atração de Toninho Rebello para as alturas. O importante é que o sino da catedral ainda está lá, tocando em raras ocasiões, em que os corações montes-clarenses repicam de orgulho e alegria. Já rapazinho, morando em Belo Horizonte, depois de deixar o Colégio Arnaldo, Toninho Rebello matriculou-se na Escola de Aeronáutica em Juiz de Fora, sem avisar a família. Segundo ele, as cartas eram morosas, a comunicação muito difícil e o desejo de voar era urgente: Eu queria seguir a carreira da aviação, tinha gosto pela aventura....Tirei breve de piloto. Chegando a Montes Claros, contou à família sua façanha, certo de que seguiria carreira na Aeronáutica. A decisão, entretanto, não foi bem aceita por seus pais. Voar na época era procurar a morte, explicaria Antônio Lafetá Rebello, em entrevista ao jornalista Jorge Silveira. No entanto, Toninho matricula-se na 1ª turma de alunos do Aeroclube de Montes Claros,fundado por Nathércio França e Flamarion Wanderley, em 1937, tendo como colegas Ormezindo Lima, Mário Rodrigues, Judith Alves, Mário Magnus Cardoso, entre outros. Era um grupo pioneiro e afoito. Em artigo da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, assinado por Juvenal Caldeira Durães, Mário, ou Maninho, como era conhecido, recorda-se de um episódio vivenciado entre ele e Toninho. Certo dia, o avião TTO apresentara problemas, e ele ficara bom tempo tentando consertá-los, até que o colega de turma, Toninho Rebello, propõe testar o avião, no ar. Toninho, ávido para voar, assumiu o comando do aparelho e levantaram voo, os dois. No entanto, na hora da aterrisagem, o avião, desnorteado, principiou a chacoalhar, não obedecendo a qualquer comando do piloto. O avião, de fato, caiu num matagal próximo ao campo de pouso, mas não houve maiores consequências para os intrépidos aviadores. Outro fato atesta o espírito destemido do jovem Tonininho. E o episódio aconteceu por ocasião de um famoso eclipse, que voltou os olhos curiosos do mundo para a vizinha cidade de Bocaiúva. No dia 20 de maio de 1947, um eclipse total do sol deixou a cidade mineira, por instantes, totalmente escurecida. As notícias do fenômeno já há muito se tinham espalhado, por isso os primeiros pesquisadores americanos começaram a chegar a Bocaiuva em julho de 1946. Ao final, seriam 128 americanos alojados na cidade, o que já demonstra o peso do evento para a comunidade científica do mundo. Numa localidade denominada Extrema, os pesquisadores construíram sua base científica, e por lá se instalaram, para assistirem a tudo, em lugar privilegiado. Certamente que tal movimentação alvoroçou a cidade de Montes Claros, e entre todos, Toninho Rebello apressou-se para ver de perto o eclipse. Assumiu o comando de um TTO, tendo ao lado o amigo Hermes de Paula, que, também aguçado pela curiosidade, não queria ficar de fora de tamanha movimentação. Voaram com instrumentos precários, debaixo de temporal, em condições de tempo muito ruins. Aterrissaram no campo de pouso em Bocaiuva, onde vinte nos aguardavam melhores condições para voar, sob o olhar de espanto de todos. Em outra ocasião, Toninho Rebello decide visitar seu amigo de infância, José Gomes, então residindo na cidade de Monte Azul. Decide ir pilotando e, para tal, manda revisar o avião, confere equipamentos de voo além de, precavido, levar consigo a mochila com o paraquedas. Em pleno voo, no entanto, faltando poucos quilômetros para chegar a Monte Azul, o motor do avião começa a ratear, apresentando problemas. Apalpa, com certo nervosismo, a mochila do paraquedas, quase certo de que estaria ali sua última chance. Entretanto, com muito esforço e uma boa porção de sorte, conseguiu fazer um pouso forçado, livrando-se de um provável acidente. Ali, já em solo da aprazível cidade, e partilhando da boa mesa do amigo, relata o caso a todos. Inquirido se sentira medo, ele respondera que não, afinal estava com o paraquedas bem atrelado em si, como garantia de vida. Acabara de dizer tais palavras, apalpando novamente, convicto, a mochila que ainda trazia consigo. Abre-a, para exibir o objeto que o salvaria, caso sua manobra não fosse bem sucedida. Para sua surpresa, entretanto, a mochila estava vazia. Uma sorte maior do que ele supusera, a princípio, ou uma estrela que parecia acompanhá-lo, talvez, favoreceu a incipiente carreira de piloto de Antônio Lafetá Rebello. Essa estrela também brilhou, quando ele foi convocado a servir militarmente, na base brasileira, na Itália, por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Estava na fazenda, trabalhando. Assim que foi convocado, partiu imediatamente. Por essa época já namorava a jovem professora de natação, Marcolina Athayde, que conhecera em um de seus habituais passeios à Praça de Esportes. Tal como num filme, antes de responder ao chamado da pátria, ficou noivo. Ficou cerca de três meses na caserna, no Rio de Janeiro, aguardando ordens para partir. Em Montes Claros, sua noiva aguardava, sobressaltada, o rumo dos acontecimentos e Dona Lourinha, sua mãe, rezava pela proteção do filho, que iria para a guerra. Não foi. A guerra tomou novos rumos. Ele não fez carreira na aeronáutica, como pretendia. Pouco depois se casaria com sua única e eterna namorada, com quem ficaria até o último dia de vida. Estava destinado a outros voos. O horizonte que o esperava era o da sua própria cidade. Uma curiosidade intensa por assuntos que envolvessem política e economia e outros correlatos ao bem estar social envolvia o jovem cidadão montes-clarense. Admirava Dr. Santos, então prefeito da cidade. Via nele a configuração de um homem à frente de seu tempo, com ideias arrojadas e mente iluminada. Colava-se a ele, para ouvi-lo falar, influenciado por suas palavras e projetos. Toninho era ainda menino, mas se acercava dele, ouvindo-o embevecido. Mais tarde, em entrevista, Toninho externaria sua admiração ao político montes-clarense: Era um gênio, um fenômeno... Fez muitas coisas para o progresso de Montes Claros: Praça de esportes, investiu na saúde pública... naquela época, sem nada a ver com política, eu achava que todo prefeito deveria ser como ele... Toninho se recordava de quando ouviu, pelo rádio, a notícia do lançamento da bomba atômica Little Boy sobre a cidade de Hiroshima. Era uma segunda feira, de 06 de agosto de 1945. Toninho estava em sua fazenda, quando ouviu a nota jornalística, pulou da cadeira onde estava, pegou seu jeep e "veio voando" para Montes Claros. Ele não conseguia explicar, mas sentia que alguma coisa de muito grande e extraordinária estava acontecendo, que mudaria história do mundo, em definitivo. Estacionou num bar em que costumeiramente os homens da cidade se reuniam para falar de política e negócios. Naquele dia, pressentido por Toninho como diferente, as conversas seguiam, no entanto, seu curso rotineiro. Os mesmos assuntos de sempre testemunhavam a vida pacata de uma Montes Claros sertaneja, debalde os esforços de Toninho para incluir na pauta do dia a notícia do bombardeio americano, sentiu falta do Dr. Santos, pois sabia que ele iria dimensionar o peso daquele acontecimento sobre a vida dos homens, a partir de então. Ninguém quis falar sobre a bomba de Hiroshima. A vida corria devagar, o homem ia devagar, um cachorro atravessava a rua, devagar, como lembrava o ritmo arrastado de um famoso poema de Drummond. O coração de Toninho Rebello, no entanto, pulsava energicamente, em ritmo frenético. Estava escrito que ele voaria de outra forma. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, a ser lançado na noite de 25 de fevereiro, no Parque de Exposições, em M. Claros) |
Por Ivana Rebello - 16/2/2015 13:18:51 |
O filho de Jayme Rebello: um menino que nadava nas águas do Rio Vieira O culto da exatidão atrapalha-me. Afinal o que importa é a cronologia do sentimento, e não a do calendário. Cyro dos Anjos Um dos passageiros do navio que aportava no Rio de Janeiro, em setembro de 1900, era um menino com 13 anos incompletos, chamado Jayme Rebello. Trazia de seu um embrulho, com seus poucos pertences, uma carta de recomendações a um parente distante e uma vontade de " fazer a vida" no Brasil, então terra de oportunidades. Deixara mãe, irmãos e a pequenina Aldeia de Sanjurge, vinculada ao município de Chaves, situada muito próxima da Espanha, numa distância que não chega a dez quilômetros. Jayme Rebello fixou-se na cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhou na casa comercial Gomes de Castro & Cia, do ramo de armarinhos e ferragens. Posteriormente tornou-se "cometa" como eram conhecidos os caixeiros-viajantes, que se tornaram, na verdade, responsáveis pelo abastecimento comercial do interior do Brasil. Iam onde os trilhos do trem de ferro não alcançavam; percorriam as fazendas e as casas de comércio das pequenas cidades interioranas, levando produtos dos mais diversos gêneros e notícias do eixo Rio de Janeiro- São Paulo. Em 1916, Jayme Rebello decidiu fixar-se na cidade de Montes Claros. No ano seguinte, casou-se com Dolores Quiroga Lafetá, chamada doravante de Dolores Lafetá Rebello ou "Dona Lourinha", como era mais conhecida. Em 1918, nascia o primeiro dos 15 filhos que teriam: Antônio Lafetá Rebello. Depois dele vieram Jayme Rebello Filho, Elza Lafetá Rebello - falecida ainda na infância -, Maria Clara Rebello, Dulce Lafetá Rebello, João Lafetá Rebello - morto na juventude -, Olga Rebello, Fábio Lafetá Rebello, Carmen Lafetá Rebello, Vera Rebello Pires, Roberto Rebello, Lúcia Rebello Athayde, Isabel Rebello de Paula, Célia Lafetá Rebello e Geraldo Lafetá Rebello. Toninho Rebello cresceu numa Montes Claros antiga e pacata. Nasceu um ano depois da chegada da luz elétrica ao município, considerada por muitos o primeiro grande passo da cidade rumo ao progresso. Um trecho do livro Montes Claros, sua história, sua gente e seus costumes, de Hermes de Paula, dá aos leitores de hoje o significado afetivo e histórico do fato: Quando enfim o cronometro feriu as oito horas e a luz se fecha clara, brilhante, majestosa, um verdadeiro delírio se apossou de todos os circunstantes, que romperam em vivas e palmas uníssonos e entusiásticos." (PAULA, 1957, p. 25). Era a luz que chegava! Depois, muitos foram comemorar no baile de gala, na Escola Normal. Nos primeiros anos de vida, em idade escolar, Toninho Rebello foi morar com a avó materna, Dona Quita Lafetá, pois precisava estudar e seus pais, Dolores e Jayme Rebello residiam por essa época na fazenda Cedro, um pouco distante da cidade. Em 1926, quando Toninho era um menino de oito anos, é inaugurada a 1ª agência bancária em Montes Claros, na rua que hoje tem o nome de Dr. Veloso, n. 490. Deu-se, naquele mesmo ano, a chegada da ferrovia à cidade. A ferrovia era a maior reivindicação do Norte de Minas Gerais ao governo da união. O Brasil emergia como nação, sedento do novo, abrindo estradas rumo ao interior. A moeda era o real, os famosos "mil-reis". O café também era uma moeda forte: movia a economia e gerava enriquecimento à sombra de suas plantações. Do sul de Minas Gerais até o interior de São Paulo, as lavouras de café avançavam fazendo algumas fortunas. A semana de Arte Moderna de 1922, que provocaria estardalhaço em São Paulo, assinalava uma vontade de sair de uma realidade agrária, rural, para entrar em novos tempos. O apito das fábricas, nos bairros operários, era um chamado insistente à industrialização. O sertão de Minas Gerais, norte árido, cerrado rude, parecia apartado de toda essa movimentação, até a chegada do trem de ferro. Para a maioria da população o trem de ferro representava o progresso. O trote sincopado dos cavalos e o ritmo lento dos carros de bois perderiam pouco a pouco seu espaço, dando lugar ao ritmo frenético de uma modernidade a que o Brasil ansiava. Montes Claros, daquele início de século XX, contava com cerca de 30.000 habitantes. Sua economia girava em torno da agricultura, em que se destacava a produção de grãos; de uma incipiente indústria, que contava com fábrica de tecidos, a Cedro Madureira, da qual Jayme Rebello foi um dos primeiros proprietários; uma charutaria e um comércio, movimentado por caixeiros-viajantes e representantes comerciais. Havia um jornal que já apresentava, naquela época, caracteres de uma modernidade emergente: continha fotos, charges e desenhos em seu espaço, e trazia, para o deleite das damas da época, publicações dos folhetins, que levavam para o sertão ensolarado os dramas de uma Europa gótica e enevoada. O trem de ferro, entre outras coisas, fomentaria o comércio de gado, dando impulso às atividades dos invernistas. Mas, essencialmente, o trem de ferro representava, no sonho de muitos sertanejos, a ligação de Montes Claros com o resto do Brasil. Toninho Rebello, menino como todos, cresceu jogando futebol no largo da Matriz, junto à Capela de Nossa Senhora e São José, onde nasceu a cidade. As casas, que foram surgindo atrás da igreja, passaram a ser chamadas de Rua de Baixo, porque ficavam mais próximas do rio. Naquele tempo, era ali que se concentravam os grandes acontecimentos e festejos, incluindo as festas de Agosto, com suas alegres cantorias e seu colorido mestiço: afro, lusitano e bugre - herança de três matizes. A casa que Jayme Rebello construiu, e na qual nasceram quase todos os seus filhos, ficava ali nas proximidades, na antiga rua Direita, hoje rua Dr. Veloso, próximo ao casarão dos Oliveira. O português arrematara em hasta pública o prédio em que funcionava a antiga Câmara Municipal, para ali construir morada. Até hoje a casa resiste aos rumos da vertiginosa expansão imobiliária por que passa Montes Claros, nos dias atuais. À noitinha, as famílias reuniam-se na porta das casas. As cadeiras eram dispostas em semicírculo e, uma a uma, iam todos chegando para o serão cotidiano. Nessas rodas familiares, discutiam-se assuntos os mais variados: eram dadas as notícias de nascimento ou de noivado, falava-se de política e de religião e também se liam os capítulos dos folhetins, que eram ansiosamente aguardados. Toninho foi um menino como todos os meninos daquela Montes Claros antiga. Corria livre pelas ruas enlameadas, caçava passarinho, jogava pedras, ia nadar escondido no Rio Vieira; diversão proibida, por causa da xistose ou esquistossomose, verminose bastante comum naquela região pobre. Contraiu xistose algumas vezes, e teve melhor sorte que seu irmão, Joãozinho Rebello, que morreu, alguns anos depois, vitimado dessa doença de sertanejo. Somente uma vez o menino Antoninho apanhou do pai. Montes Claros acabara de receber um novo sistema de iluminação elétrica, que maravilhou a todos. Era a luz que chegava, agora com mais força e maior alcance, permitindo que os serões familiares se encompridassem e com ele, a gostosa prosa do final do dia. Numa tarde, um carro de boi passa defronte à casa de Jayme Rebello com seu ritmo lento e sua cantiga arrastada. Entreolharam-se os três filhos mais velhos de Jayme Rebello: Toninho, Jayminho e Joãozinho. A um sinal positivo do mais velho, aboletaram-se todos no carro de boi e rumaram para o alto da serra, somente para ver as luzes da cidade se acendendo. A visão da cidade iluminada enterneceu o coração do menino Toninho: começara muito cedo a sua história de amor com sua cidade... No entanto, a casa de Jayme e Dolores estava em polvo-rosa com o sumiço dos três meninos. Procuram nas vizinhanças, nos poços, nas beiras de rios e córregos, nos fundos de cisterna e nenhum sinal dos fujões. O alarme se estendeu aos amigos e conhecidos, que logo se propuseram a ajudar nas buscas. A noite já ia adiantada, quando os três reapareceram. Haviam voltado a pé da serra, embevecidos com o espetáculo da cidade iluminada, mas não escaparam das reprimendas da mãe e de um bom corretivo do pai. Toninho Rebello afirmaria, durante toda a vida, que nunca quisera ser doutor, mas sua formação educacional seguiu a tradição das famílias abastadas da época. Estudou as séries iniciais no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e continuou os estudos como interno, no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, pertencente à Congregação do Verbo Divino e dirigido por padres alemães. A semelhança do personagem Sérgio, do conhecido livro O Ateneu, de Raul Pompéia, Toninho deixava a vida de menino livre de cidade interiorana para ali conhecer outro mundo. Mundo de regras e horários rigorosos, no qual as cartas dos pais chegavam muito demoradamente e só eram passadas aos estudantes depois de abertas e lidas pelo olhar de censor dos padres. Ali também estudaram Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa. As férias eram períodos ansiados, mas nem sempre, devido às dificuldades com transportes e comunicação, era possível gozá-las em casa, na sua cidade. As irmãs Maria Clara e Dulce se recordam que, inconformado com a rigidez monástica, a ausência de seus passeios às margens do Rio Vieira e dos alegres serões de sua terra natal, Toninho, certo dia, foge da severa vigilância dos padres alemães e vai buscar acolhida em casa de uma parente, irmã de seu tio avô, que morava em Belo Horizonte. Os parentes insistiram em demovê-lo da ideia, tentam argumentar com ele; por fim, quiseram leva-lo à força de volta ao colégio. Os padres, também chamados, tentam levá-lo de volta ao colégio, mas o menino, irredutível, agarra-se à barra de um antigo fogão de ferro com todas as forças, negando-se a voltar à escola. Quase que o fogão ia perdendo uma parte... Nunca se soube de fato o motivo real de tamanha resistência, disso ele nunca falou. Voltou ao colégio para completar os estudos, mas na condição de aluno externo. O episódio, no entanto, já revelava, no menino de ontem, uma das características mais evidentes no homem que seria: a teimosia. Certa feita, muitos anos depois, quando Toninho já era prefeito de Montes Claros, em entrevista, o jornalista Jorge Silveira perguntou-lhe se era verdade que ele era um " cabeça dura", como diziam. Toninho riu: Não sou cabeça dura, sou determinado. Aliás, sou de uma família de teimosos... Lembrou-se, na ocasião, de um caso quase folclórico na família Lafetá, de quem descendia sua mãe, Dona Lourinha. Um parente, querendo demonstrar convicção, agarrou-se a um garfo, aos 16 anos, determinado a não soltá-lo nunca, até o fim dos dias. Segurou-o até os 36 anos, quando largou o garfo e morreu. Desde então, na família, quando alguém se aferra convictamente a uma decisão, não se mostrando disposto a considerar outros pontos de vista, sempre há quem se lembre do fato e saia com a admoestação: Olha o garfo, olha o garfo... Toninho Rebello, em sua vida pessoal e pública, algumas vezes ouviu esse refrão. Como filho, foi obediente, pois era muito difícil escapar à severa rotina da casa de Jayme Rebello. Brincalhão com os irmãos, espirituoso desde sempre, vivia pregando pequenas peças nos mais novos. Nas noites, sob as luzes débeis da época, escondia-se sob um lençol branco e passava pela janela do quarto das meninas, fazendo barulhos fantasmagóricos. Gritos de susto, sobressaltos e balbúrdia eram, pouco depois, contidos pela voz do pai que pedia silêncio e mandava todos para a cama. Praticava esportes, principalmente vôlei e basquete. Não chegou a destacar-se como um dos melhores, mas também não era dos piores, conforme ele próprio se lembrava. Foi faixa preta de judô, sendo, inclusive o responsável por trazer o esporte para a cidade. As aulas aconteciam no então Clube do Ateneu, clube que ajudou a fundar, e cuja sede era o Estádio João Rebello, em homenagem ao irmão que fora grande desportista e que falecera precocemente. Desde os 16 anos, Toninho sentia uma necessidade de se envolver com alguma coisa pública, participando de várias agremiações e clubes de interesses os mais variados: futebol, filatelia, banda de música. Herdara o espírito pioneiro do pai. Participou ativamente do Combinado Padre Osmar, como atleta. Era integrante do Grêmio Literário, ao lado dos amigos de sempre José Gomes e José Laércio. Dessa agremiação é que surgiria, mais tarde, o Ateneu, do qual presidente e em que muito trabalhou. Mas essa já é outra história. Revolver o tempo à cata das histórias de infância de Antônio Lafetá Rebello foi também um gratificante reencontro com a história de Montes Claros. Muitos meninos, como ele, de uma cidade antiga, que percorreram a Rua de Cima e a de Baixo, viram os mouros e cristãos lutarem nas cavalhadas, ali, perto do Fórum; subiram em pé de goiaba; pegaram piaba no Rio Vieira; jogaram pião e empinaram papagaio. Meninos homens, meninos-velhinhos, meninos de outra cidade. No Toninho menino, encontrei vestígios do homem adulto. Desde pequeno fora corajoso e arrojado. Muitos anos depois, como prefeito de sua cidade natal, ele deixaria grafadas na história e na paisagem dessa cidade seu compromisso com sua gente. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, a ser lançado na noite de 25 de fevereiro, no Parque de Exposições, em M. Claros) |
Por Ivana Rebello - 11/2/2015 11:07:54 |
Os sinos dobram Ivana Rebello A morte de qualquer homem me diminui porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti. John Donne, poeta inglês do século XVI. Montes Claros acordou diferente naquela manhã de novembro de 1992. Meu olhar percorreu as ruas tortas, estreitas, entrando e saindo umas das outras, desordenadamente. Vejo um velho muro verde de musgo que é porta de entrada para um beco também velho. Ali sobreviveu um pé de murta cheirosa ao lado de flores plebeias, nascidas na frincha das pedras. Na parte antiga, as casas velhas encostam-se umas nas outras, cochichando como velhas comadres: Toninho morreu... Toninho morreu... Montes Claros, minha cidade, chorava pelo filho que a amou. Dali se via uma dureza de montes, dois, antes revestidos e enflorados, que, naquele dia, entremostravam as faces lascadas pelas máquinas vorazes dos homens. E a poeira fina e amarela, que a tudo cobria como pó e pele, inquietava-se. Sonhos de velhas árvores. Lama pestilenta. Evocação do burgo, primitivo e agreste. Uma planície de terras, cercada por montes azulados. A bota ferrada do fazendeiro pisando a dura terra. Minha cidade de sol, batida pela inclemência do sertão sem chuvas, dava adeus a seu filho que partia. E, não sei de onde, vinha até mim o canto melancólico do vaqueiro - um longo e tristíssimo aboio para dor e saudade. A primeira a me avisar foi Júnia, minha prima: Tio Toninho morreu... A notícia interrompera uma aula, no meio da tarde. Se eu tivesse um dom premonitório, eu saberia que alguma coisa muito maior se interrompera na cidade de Montes Claros. Os prenúncios dessa mudança já se anunciavam há algum tempo. Lembrei-me de alguém - um desses homens cujo nome não vale a pena citar - que, por ocasião da última campanha política da cidade, ria desabridamente, de um cartãozinho elegante, cunhado e assinado por Antônio Lafetá Rebello. No cartão, Toninho Rebello manifestava apoio a um candidato e pedia a quem o recebesse que votasse nesse candidato, se não por ele, mas por amor a Montes Claros. Quem ria, sacudia o cartão, mostrando- o a alguém: Que coisa mais fora de moda! Não se faz mais política dessa forma! Toninho está ultrapassado... Eu era uma jovenzinha cheia de ideias e algum atrevimento. Olhei abismada para aquele pobre senhor. De fato, as vultosas propagandas e o estardalhaço haviam tomado o lugar das grandes obras e da sobriedade nos gastos com o dinheiro público. O cartãozinho de meu tio amarelara e envelhecera. Começava a morrer ali um jeito de fazer política e administrar. Ele não elegeu seu candidato. Mas naquela manhã de novembro, a cidade chorou por ele. Morreu serenamente, em sua casa, no condomínio que construíra para si e sua família e ao qual dera o nome de seu sogro "Jacinto Ataíde", velado pelas flores amarelas da acácia, que ele mesmo plantara. O coração que fora grande, fora enorme, finalmente se rebelara contra sua displicência de cardiopata e sua proverbial paixão pela carne de sol de dois pelos, de Mirabela. Um infarto fulminante o levou. Os filhos que moravam ali, ao redor, reuniram-se. Tia Marcolina pranteava a perda de seu grande companheiro de vida, pai de seus sete filhos. Cristina, sua filha, grávida de sua primeira menina - Acácia - com a cabeça do pai sobre os joelhos, deixava as lágrimas correrem silenciosamente pelo rosto. Os amigos, um a um, foram chegando. A notícia se espalhara como rastro de pólvora. Toninho Rebello morreu... Oswaldo Antunes, diretor de O Jornal de Montes Claros, diletíssimo amigo, descreve a cena de forma admirável: Dos amigos, o primeiro a chegar à casa naquele dia foi o Diretor de O Jornal de Montes Claros, que viu Toninho como que dormindo, semblante sereno, a cabeça apoiada no colo da filha Cristina, ela acariciando-o e chorando, as lágrimas a caírem sobre seu ventre expandido onde pulsava uma vida nova. Era vida menina, prestes a sair da Plenitude para o mundo, enquanto o avó se acabava no mundo fortuito e na Plenitude imergia. A cena revela mais esperança e futuridade do que tristeza e passamento. O homem público, pai, avó, amigo não se fora completamente: a vida e seu brilho pareciam ter ficado onde estava o corpo quieto, e, como lá fora a radiação da branca e diurna lua cheia, acariciavam a família despercebidamente, consolavam amigos, vigiavam a cidade amada. Um grande homem despedia-se do outro com palavras que só ele, jornalista excepcional, poderia dizer. Naquele dia, ele não noticiava o fato: pintava uma cena que assinalava para um fim e um começo. Paulo Narciso, outro grande jornalista, que se aproximara muito do cidadão Toninho, longe e fora do poder, quando soubera que este era alvo de perseguições mesquinhas, as quais pretendiam atingir também sua família, dá seu testemunho de que, pouco antes de sua morte, mantivera com ele conversa amigável, por telefone. Toninho lhe parecera alegre e bem. Tinha acabado de retornar do Parque de Exposições. Não é possível encontrar palavras que substituam o momento, escrito de forma impecável por Paulo Narciso: pelo telefone novamente o revi, manso, prudente, modesto, limpo no corpo e na alma, como sempre metido em camisa alva e bem passada por sobre a calça, como se ao alcance da mão existisse permanentemente um estoque de camisas, limpas como ele, sóbrias como sempre foi. Na conversa, de vinte minutos, mencionamos aspectos da vida da cidade, lançamos um olhar sobre o cotidiano e nos despedimos com afeto, nos prometendo novas conversas mais amiúdes. Desci para o almoço com minha mãe, quando o telefone imediatamente tocou ao chegar. Era o prefeito Mário Ribeiro. Ele avisou que ia me dar uma notícia dura, e recomendou que me assentasse. "Toninho Rebello acaba de morrer". Contraditei imediatamente, com veemência, dizendo que havia falado com ele quinze minutos antes, que era impossível, que era engano, que não podia ser - relutei o mais que pude. Mário Ribeiro não deixou dúvidas, categórico, mas não convincente. Larguei do telefone, tomei o carro, corri para a casa de Toninho. Ao entrar na reservada rua que desemboca na sua casa, onde menino estudei com o seu filho Jacinto nas amoreiras que lá existiam, derramadas sobre o muro, ao entrar na rua o movimento na porta da casa fez-me convencer daquilo que não fora capaz o telefonema de Mário Ribeiro. Estava mesmo morto, e apenas fisicamente, o maior prefeito da história de M. Claros, paradigma do homem público que imaginei e conheci na vida, em profundo desacordo com o que viria depois e prossegue até hoje.[...]. Morto, parece ainda maior do que vivo, repete a lição do professor Pedro Sant`ana, também saudade nossa. Eternas lembranças, às quais, é preciso recorrer, e meditar. Morto, parece ainda maior do que vivo. Quanta verdade encerrava essa frase! Sobretudo porque Toninho Rebello ostentava uma postura rara, uma humilde altivez de homem bom. Nunca quis ser grande, por isso abriu mão de placas e honrarias. Preferia as tardes longas, ao lado de sua Marcolina, na sossegada varanda de sua casa, onde, vez ou outra, achegavam-se os netos. O pai o chamava de " Antoninho", a maioria preferia dizer "Toninho Rebello" e para outros era simplesmente "Seo Tunin". Estudou no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, mais tarde a Escola Estadual Gonçalves Chaves, e no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, como interno. Era inteligente e tinha cultura, mas era humilde demais para fazer alarde do que sabia. Nunca teve preocupação em ser doutor. Tirou o breve de" piloto e gostava de voar. Em razão da insatisfação familiar, que achava que voar era procurar a morte, Toninho Rebello não foi piloto da Escola da Aeronáutica. Voou em outra direção, um voo rasante e audacioso, rente ao chão de Montes Claros, cidade que amou desabridamente, para ampliar seus horizontes. Cheguei à sua casa por volta das quinze horas. Havia ali muita gente. Meus primos e eu chorávamos. Alguns muito furtivamente, porque um Rebello raramente chora para fora. Meu pai estava com os olhos vermelhos - eu podia pressentir o vazio em seu peito. Tio Expedito Guarinello, que fora seu assessor e amigo fiel, estava transtornado. Perdia o grande amigo, o homem que mais admirou. Mamãe, com quem meu tio Toninho sempre brincara, lembrou-se do dia, não muito distante, em que recebera um telefonema dele, no final de uma tarde: Marília, você quer ser minha vizinha ? Uai, Toninho, vai se mudar de casa ? Sim. Vou para um lugar bonito, sossegado, cercado de árvores frondosas, com vista para o nascente... Pretendo morar lá pra sempre. Que lugar é esse Toninho? Deve ser muito bom. Vou falar com Roberto. Qual é o endereço ? Com uma gargalhada, tio Toninho explica: Lote tal, quadra tal, no cemitério. Mamãe reagiu quase com raiva, enquanto meu tio ria sonoramente. Para quem não sabe, minha mãe é uma das pessoas que mais gostam da vida e nutria pelos assuntos que falavam de morte uma verdadeira e confessa repulsa. A proposta de meu tio visava apenas tirá-la do sério. Mas naquela tarde de novembro ele estava indo à sua ultima morada. Ouvi conversas daqui e dali, mas elas se perdiam no tumulto de minha tristeza. Entrei em sua casa e meu olhar de professora procurou sua estante de livros. Os livros falam muito sobre os homens. Havia uma parte dela, a maior parte, em que só havia escritores de Montes Claros. Ali, naquele arranjo simples e doméstico, lia-se, mais uma vez, uma história de amor de um filho à sua terra natal. Queriam que ele fosse velado na Câmara Municipal, na prefeitura da cidade que ele amou e a qual administrou por dois mandatos. Outros falaram em levar o corpo para o Centro Cultural, que ele havia construído. Naquela época não entendi bem, mas hoje compreendo a acertada decisão de Tia Marcolina: seu marido seria velado na Igrejinha dos Catopés, conforme a chamávamos, ali, na Praça Portugal, onde eles haviam se casado. Não poderia haver outro lugar para dar adeus a Toninho Rebello. Algum tempo atrás, meu tio Expedito Guarinello dissera-me que eu deveria falar com tio Toninho. Ele estava amargurado com tantas inverdades que andavam dizendo a seu respeito, talvez eu devesse escrever alguma coisa... Mas não tive tempo, meu querido tio Toninho. Aquele encontro que eu e tio Expedito combinamos nunca aconteceu. Outros bons homens se foram. Montes Claros, a nossa cidade, está mudada. Cresceu vertiginosamente, mas não sei se cresceu bem. Hoje, quase que não se pode andar pelas ruas. Instintivamente, procuro a parte antiga da cidade. Onde as ruas são mais estreitas e as casas caiadas me olham com suas longuíssimas janelas azuis. Velha cidade de meus avós. Rude tronco ancestral, raízes fundas. Essa velha cidade sussurra a meus ouvidos as muitas coisa que viveu. Naquele dia 10 de novembro de 1992, Montes Claros chorou. E os sinos dobram até hoje, passados mais de vinte anos de sua morte, quando se fala no nome de Toninho Rebello. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, a ser lançado na noite de 25 de fevereiro, no Parque de Exposições, em M. Claros) |
Por Ivana Rebello - 9/2/2015 16:24:40 |
Palavra da autora Por que escrever um livro sobre Antônio Lafetá Rebello? Os motivos são muitos. Entre eles o fato de que não há, na cidade em que ele foi prefeito e que verdadeiramente amou, nenhuma referência à sua memória. Nas muitas obras que realizou, as quais não costumava colocar placas, estão afixados os tempos em que importavam mais aos políticos executar que propagar. Toninho Rebello, como era conhecido, não foi político, no sentido que hoje se entende pelo termo - e essa característica o afasta daqueles que insistem em vincular seu nome a qualquer grupo político. Ele foi um grande administrador e, indiscutivelmente, foi apaixonado por sua terra natal. Sua época não foi o da propaganda, cujo troar causa mais estardalhaço que as obras que pretende anunciar. Era comum vê-lo sentado na mureta da antiga Caixa Econômica Estadual, na rua Dr. Santos, cercado de amigos, usando confortáveis calças de tergal e camisas de manga curta, sempre por fora das calças. Foi um homem simples, bom, leal a seus princípios. Era inquieto, obstinado e empreendedor. Muitas coisas se falam sobre ele. E nem todas são verdadeiras. Este livro surgiu de uma admiração mútua: minha e do jornalista e escritor Jorge Silveira, a quem muito respeito pela coragem; pelo exercício do jornalismo seno, inteligente, e por seu zelo a Montes Claros. A ele, como grande jornalista que é, coube a parte mais densa deste livro: aquela que testemunha o político, o prefeito, o ideólogo. A mim, coube o retrato do homem de família, que, entre outras coisas, recobra lembranças de um menino comum, que corria nas ruas de Montes Claros. Sua vida pessoal não o diferencia de tantos que fizeram a história da cidade; cresceu, casou-se, teve filhos e netos. Mas também nessa vida íntima ele se pautou pela conduta íntegra e severa. Durante minha vida, ouvi inverdades a respeito de Toninho Rebello. E ainda as ouço. Aceitei o convite de Jorge Silveira por duas razões: porque conheço sua inteligência e competência como jornalista, em todos os aspectos que engrandece essa tão nobre profissão, e porque precisava, como professora, sobrinha e montes-clarense, deixar escrito um testemunho à minha cidade. Confesso que senti dificuldades, pois Antônio Lafetá Rebello foi um homem discreto ao extremo e bastante exigente com seus filhos. Tive receio de invadir uma casa tão serena que tão bem soube se resguardar da luz e da lama que costumavam resvalar da cena política. Agradeço a todos que me abriram suas casas, seus corações e suas memórias. Este livro não pretende idealizar Toninho Rebello. Seu objetivo é apenas contar uma história. Uma história que a cidade de Montes Claros merece conhecer. (Extraído do livro "Toninho Rebello, o Homem e o Político", de Ivana Rebello e Jorge Silveira, a ser lançado na noite de 25 de fevereiro, no Parque de Exposições, em M. Claros) |