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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 5 de novembro de 2024


Saulo   
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Por Saulo - 8/3/2016 12:30:22

Luto entre os bicentenários catopês de M. Claros. Faleceu no final da manhã de hoje o líder do único terno de São Benedito das Festas de Agosto. Morreu Expedito, o mais simples, o mais humilde, o mais terno entre os catopês. Um dos mais antigos, e admirado. De 72 anos, 64 de catopê, 4 filhos, 11 netos, 4 bisnetos. Carroceiro de ofício. Carroceiro como a maioria dos chefes catopês. Sentiu uma dor. O suficiente para morrer no seu estado de debilidade física.

A saúde vinha frágil, há anos. Nas últimas cinco Festas de Agosto, comparecia ao dever de cantar e dançar pelas ruas vencendo penosas limitações do corpo, antípodas ao vigor de suas obrigações. Mais de uma vez, saiu e voltou para a máquina de hemodiálise depois de envergar as vestes - para ele sagradas, de dançante de Agosto, de líder do cortejo rosa, do Reinado de São Benedito.

Seu terno historicamente foi o menor. O menos destacado. O que, por tradição, não pode ter o "chama", o instrumento marcante dos catopês que fundo toca, e chama as almas, e as convoca, e as arrebata, a tempos imemoriais. A convicção do líder, o exemplo de uma vida, sua dedicação canhestra levada ao ponto extremo, tudo fazia armazenar admiração, respeito, aplausos, e lágrimas, muitas lágrimas, em torno do chefe humilde, esconso; invisível mesmo, numa modéstia comovente, e trêmula.

No último ano de Joaquim Poló, o mítico chefe dos Caboclinhos, os dois reservadamente, nas sombras e desvãos do caminho, trocavam comprimidos para alíviiar a dor - um com câncer, o outro, Expedito, com severos problemas causados por hemodiálise prolongada.

A maior festa de Montes Claros está de luto pelo seu catopê mais autêntico, (e angélico); inversamente, o mais simples, e para quem devem ser levantadas todas as homenagens. E será pouco, para exemplo tão devotadamente rebuçado pela alma nobre.

(Aui!, dizem catopês, marujos e caboclinhos quando é hora de deter a música, silenciar os tambores, calar. Aui!, respondemos todos. Mas, não demorem, sigamos).


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Por Saulo - 10/7/2015 08:56:10
Não estava lá. Sequer sou testemunha ocular. Isto é, alguém que viu o acontecimento, sem nele interferir ou tomar parte. Mas, posso dizer - estive presente, ainda assim. Todos dizem que foi bela a cerimônia do adeus de Vanda Pereira Souto, de 75 anos. Esposa, desde 1959, do soldado da PM João Souto, que também não conheço, mas que também admiro.
Os dois se conheceram na 1ª Igreja Batista de M. Claros, em 1952, naquele ermo atrás do Cine Coronel Ribeiro, ao lado da estação meteorológica. Poderia dizer: a única igreja "crente", "protestante", que havia em M. Claros naqueles dias e noites, cercada de desconfianças, e de indagações. Vanda era do coro, cantava no Coral. Assim, persistiu.
Terça-feira - é aqui que devo chegar, terça-feira toda a assembléia cristã se reuniu para as suas despedidas. O hinário de sua preferência foi esgotado, uma por uma das músicas que amou, e cantou. Seis pastores se revezaram na predicação. Uma beleza, e sinto que não de tristeza, mas de magnífica esperança.
Na imaginação, ainda vi: foi coisa tão bela como fazem os originais seguidores de Francisco de Assis - quando é hora de um deles partir. Cantam a "cerimônia da passagem", creio que dura uma noite, sem traço de tristeza que ouse entrar, a perfeita alegria. Há, e só, um rio de esperança, o "oceano sem margens", de que muito se ouvirá falar.
("Além do Rio Azul", cantaram todos, nas dobras da despedida de Vanda Pereira Souto, 75 anos, dona de casa. Exuberantemente dona de casa, como pouco se usa dizer agora. Não estive lá. Mas um clarão percorreu a cidade. Nem só de notícias tristes vivem os homens nestes tristes tempos).


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Por Saulo - 14/3/2015 15:56:15
Uma cidade que perde a sua memória é uma cidade destinada a perder também a sua identidade, e até o nome que a faz reverenciada entre as demais, especialmente em matéria de cultura, arte e história.
Leio hoje convite para Missa de 7º Dia, de Mary Wilson Maldonado Dutra Nicácio.
Poderia ser simplesmente Mary Maldonado, e muitas excelentes e gratas recordações brotariam de todos os pontos, por variados motivos.
Foi moça lindíssima. Exemplar dona de casa. Irmã em familia numerosa. Artista inigualável.
Aqui, devo me deter. Cantava como um anjo - e me lembro do que grafou JK , no seu diário íntimo, nos dias mais doridos, "hoje, ouvi um anjo cantar...".
Vou de volta aos anos 70, creio que numa noite de apresentação da requisitada Seresta de M. Claros. Ou foi numa exibição do Banzé, nas suas melhores ocasiões, numa manhã de domingo.
Mary Maldonado arrebatou o grande auditório do Palácio das Artes, ja transformado em nosso Carnegie Hall. Quando ela acabou de cantar uma de nossas músicas de seresta, hoje tão negligenciada, e era nada menos que um Querubim cantando, o auditório veio abaixo, com igual arrebatamento que só vi outra vez.
Foi por aquele mesmo tempo, quando o Balé Bolshoi se exibiu em Belo Horizonte pela primeira vez, com o seu corpo principal. Os aplausos só foram comparáveis aos enviados à nossa Mary quando, por fim, pisou o palco - último número - a diva do balé, nada menos que Maya Pllisetskaya, que não dançava, flutuou ali diante de todos, arrancando aplausos que pareciam não ter fim. A suprema dançarina de todas as Rússias...e a Flor do Campo, nossa Mary.
A comparação do aplauso, em datas próximas, foi inevitável, automática, compulsória, pois jamais vi coisa parecida.
Vívida, a lembrança me vem agora, quando triste leio, necessitado de mais explicações, o convite para irmos todos, hoje, neste sábado, às 19h, à Capela do Colégio Imaculada, para a Missa de 7º Dia, da Ressurreição, da notável Voz de nossa cidade.
Voz que migrou para os Céus, em silêncio. Como fazem os anjos. Cantará lá, e recolherá o mesmo, e intenso, e interminável, e inapagável, e eterno aplauso, que um dia a consagrou. E que ainda ouço agora, vindo de um domingo, no Palácio das Artes, na cidade de Belo Horizonte, nos anos 70. Pobre cidade que perde a sua memória pelos caminhos.


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Por Saulo - 8/1/2015 11:01:57

Igreja cheia e cantoria bonita. Assim foi a Missa de Ressurreição do escritor Haroldo Lívio, ontem às 18h no Colégio Imaculada. O templo ficou pequeno para tantos amigos. Impossível não sentir a presença do ressurrecto nesta tradição de 7º Dia, que é muito brasileira e praticamente não existe no resto do mundo. Heródoto, pai da História, viveu 500 anos antes de Cristo e narrou que no princípio dos tempos se comemorou, com alegria, mais o Dia da Morte do que o Dia do Nascimento - ao contrário de hoje. Assim também foi nos primeiros séculos Cristãos. O Dia do que chamamos Morte era visto como o verdadeiro dieis natalis, porque marca o nascimento para a Vida Eterna. Mudaram-se os tempos, tornados menos divinos e mais humanos.
O fato é que ontem, na Ressurreiçao do grande, imenso Haroldo Lívio, havia esta certeza de permanência, de que ele está Vivo, na melhor tradição cristã. Maria do Carmo, viúva, e as três belas filhas distribuíram "santinhos" de Haroldo, já de regresso ao Pai, e no verso a poesia de Augusto Frederico Schmidt, bardo que escrevia os discursos de JK. "Quando me levareis em mim mesmo mudado? Para o grande mar, o grande mar, o grande mar...". O poema alcança, toca a melhor definição de Deus da tradição Vedanta - o "oceano sem margens". Haroldo está feliz. Por muitos motivos, e também pela presença, luminosa, na sua Missa de Ressurreição, da também celebrada escritora Yvonne Silveira, que acaba de comemorar os 100 anos.


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Por Saulo - 4/1/2015 10:45:37
Ainda o imenso Haroldo Lívio, sábio e modesto, que estas coisas costumam andar juntas. Haroldo gostava do poeta Tagore, indiano que viveu na Inglateerra. Indiano prêmio Nobel de Literatura. Indiano, claro, da linha dos Vedas, de Shankara, de 10 mil anos de tradição discipular. Indiano, que sem nunca ter ouvido falar do nosso Sócrates particular, e do seu Jardim de Academus, predisse o seu caminho, que é de todos que atingem tal compreensão. Diz o poeta, Grande Cisne de Outras Margens:

É hora de partir, meus irmãos, minhas irmãs
Eu já devolvi as chaves da minha porta
E desisto de qualquer direito à minha casa.
Fomos vizinhos durante muito tempo
E recebi mais do que pude dar.
Agora vai raiando o dia
E a lâmpada que iluminava o meu canto escuro
Apagou-se.
Veio a intimação e estou pronto para a minha jornada.
Não indaguem sobre o que levo comigo.
Sigo de mãos vazias e o coração confiante.


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Por Saulo - 6/12/2014 15:39:58
Creio que muitos se lembrarão do comerciante Zé Amáro, amigo de toda gente lá pelos anos 50, 60 e 70. Mantinha o armazém mais movimentado do antigo Mercado de M. Claros, na Praça Dr. Carlos, cuja lamentável demolição privou Montes Claros de um dos seus símbolos, de uma de suas marcas.
Zé Amaro, voltemos a ele e à sua alegria, era ruidoso.
Falava muito alto, era pequenito, gordinho.
Vivia esbaforido, de um lado para o outro, sempre empinando os óculos, suando. Era personagem central da vida de uma Montes Claros hoje submersa, mas nunca morta, burgo sentimental que encontrava nele a tradução lírica e divertida. Rocambolesca, até.
Aqui, entro na história, ditada num improviso e numa saudade.
Zé Amaro tinha muitos filhos. Quando nasceu o último, ou um dos últimos, ela propagandeou: "vai ser general, será general...". Todos se deliciavam com suas histórias, sua sinceridade, a autenticidade e pureza do sertão profundo, ditas a todo vento, repartidas com a freguesia anônima, e também para os de cumeeira, como o historiador Nelson Viana, sempre louvado, seu confidente preferencial.
O múltiplo Dr. Konstantin, médico, búlgaro, humanista, filósofo, retratista, pintor e cartunista, dr. Konstantin imortalizou o pequeno grande Zé Amaro em dezenas de bicos de pena publicados nas nossas revistas, em especial na Encontro, de Lúcio de Benquerer (e acrescentei o de, de propósito, e todos entenderão o propósito, e o endossarão).
Éramos felizes naqueles dias de doce isolamento, quando conseguir alguém falar para B. horizonte, por telefone, era o acontecimento do dia....
E Ze Amaro sempre repetindo... "vai ser general..."
A cidade, antes de crescer, inchou, como segue inchada, incapaz de se reencontrar; Zé Amaro subiu para os páramos, levando o seu folclore; o mercado foi derrubado, virou cimentão, virou praça de comício, virou nada, e por fim virou...shopping popular - quando hoje seria o solar da nossa cultura; a avenida Coronel Prates, coitada dela, peitou a Cruz, provou do martírio e descendo vai, reduzida a correia de transmissão de um supermercado, irreconhecível, desventrada, exausta; tudo mudou, mudou muito, nem sempre para melhor, mas a profecia de Zé Amaro, recolhida por tantos, esta não desapareceu. "Será general, vai ser generalll..."

O "mais pequeno" dos filhos de Zé Amaro, como me autoriza dizer o maior dos poetas portugueses, o mais pequeno cresceu, matriculou-se na Academia das Agulhas Negras, recebeu a espada de oficial e - não sei se ainda na presença física de Zé Amaro, empreendeu um carreira vertiginosa no Exército Brasileiro.

É hoje general. Creio que esperando a última e definitiva estrela - das 4 possíveis. "Em tempos de paz", replica Zé Amáro, do céu.
Comanda as tropas terrestres em Minas, subordinado apenas ao Comandante do Leste, antigo 1º Exército, e ao ministro. A profecia de Zé Amaro foi muito além.
Não sei se o General Araújo já esteve em M. Claros na qualidade de comandante em chefe do Exército em Minas. Ou se esteve discretamente.

Daria tudo para vê-lo passando em revista as tropas locais, sob o olhar, de pranto e alegria, do nosso insubstitível Zé Amaro.

(Este desfile fica portanto transferido ao coração de quantos conheceram, amaram e se recordam de Zé Amaro, ícone de um tempo e de uma cidade - que nunca jamais morrerão, enquanto existirem doces lembranças, e profecias tais, como esta).

Que Viva Zé Amaro!


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Por Saulo - 17/8/2014 14:40:22
Chove desde a manhã a norte e a leste de M. Claros, a cidade. Esta chuva - que está constante atrás do Morro dos Dois Irmãos - às vezes entra na área urbana, faz de conta que vem, e volta. Brinca. Algo querem dizer aos Catopês, desconfio.
(Creio que chama atenção para o Morro símbolo de nossa ajuntamento, e do qual resta tênue casca, pois foi transformado em cimento, ao longo dos últimos 50 anos. Cimento hoje que é de um fabricante francês, que nenhuma "bola" dá para a cidade de quem engole o símbolo, bem diferente dos primeiros donos.)
Falemos da chuva: ela parece constante para além do desfigurado, ao revés, Morro dos Dois Irmãos.
Tive notícias que é da mesma safra da chuva que hoje, bendita seja ela, cai na região leste de Minas, beneficiada por ventos marítimos. Pois pela previsão do tempo não há nenhuma chuva a nós dedicada. Bom que a meteorologia erre.
Bom que também se engane alguém, de bom coração, que culpa os nossos Catopês pelo que não fizeram.
O que fazem, fazem por 200 anos - cantam, dançam, louvam, exercitam sua pequena grande fé, no limite da nobreza e do sacrifício, na fronteira do esgotamento pessoal, físico, humano.
Mas com uma alegria que só pode vir mesmo do céu.
Não vendem sanduíches.
Não exploram comércio, bebidas e refrigerantes.
Nunca, jamais, pedem além do que vale o feijão com arroz, a carne de sol com mandioca, o arroz com pequi- que muita vez lhes fazem falta.
Não gostam daquela festa que se apropriou do seu nome, que até fecha o seu caminho. Festa, ou festival, que devia convergir para êles, mas diverge, há tantos anos.
E ainda há quem os culpe, mas são inocentes. Inocentes.
Devolvem, cantando: ""Deus te Salve Casa Santa, onde Deus fez a morada...".

A vida é feita de pequenas e grandes injustiças. Eles aprenderam, e perdoam - enquanto se vão. cantando, cantando, junto com a Marujada e os Caboclinhos - "A retirada, ê meus camaradas. A retirada, a retirada...".

Muito provavelmente hoje ainda se encontrarão com a chuva, que veio buscá-los, e os espera,
por trás da cortina do Morro dos Dois Irmãos.


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Por Saulo - 15/8/2014 15:16:36

Ligeiras anotações da presente Festa de Catopês:
1 - Toda Festa de Agosto tem seu traço de forte emoção, quase sempre oculto de quem vê os desfiles. Um exemplo é a visita anual que os Marujos, incorporados, solenes, fazem ao Cemitério. Vão lá cantar e celebrar os "marujos mortos", os que se foram ao longo de quase 200 anos.
2 - A comoção deste ano, silenciosa e sabida por poucos, veio do Terno mais humilde dos Catopês. O Terno de São Benedito. (Os outros 2 são dedicados à Nossa Senhora). O seu chefe é homem humílimo, frágil, mas de uma paciência infinita, e de uma doçura e fé incomuns. Uma integridade que ilumina. Chama-se Expedito, e também é carroceiro. Está há 60 anos nos Catopês, e nunca faltou a um mastro. Ontem, faltou ao levantamento ocorrido por volta da 23 horas. Exatamente o mastro da Bandeira sob sua guarda - a de São Benedito.
3 - Faltou por razão justificada, e comovedora.
4 - Às 6h da manhã desta Quinta-Feira do Reinado de Nossa Senhora do Rosário ele estava numa máquina de hemodiálise. Saiu de lá, direto para a Igreja do Rosário, com instruções de esperar lá, sentado, a chegada do desfile.
5 - Quando o mensageiro da ordem deu as costas, Expedito pegou o netinho pela mão e foi para a Praça do Automóvel Clube, liderar seus catopês. Cumpriu a missão, como sempre nos últimos 60 anos, e entrou na Igreja do Rosário para o o ritual máximo, que ele cumpre sem entender as causas, próximas ou profundas. Ao sair da Igrejinha, notou que "tudo estava escuro". Passou mal, com queda forte de pressão.
6 - À noite, não teve como estar à frente do Terno de São Benedito para levantar o Mastro de S. Benedito, o de sua guarda e proteção. Foi a primeira vez que não compareceu ali, na data que é a mais importante de sua vida, a cada ano.
5 - Hoje, sentindo-se "mais forte", foi com seu Terno buscar o Reinado do patrono São Benedito, missão integralmente atendida.
7 - O Terno de São Benedito - podem todos ver - é o mais simples. O mais pobre. O menos numeroso. Mas, nunca o menos importante entre os 3 atuais. Comove a leve, discreta doçura que o carroceiro Expedito transmite ao grupo, que também tem o som mais baixo, menos pungente entre todos. Por razão que ignora, e que perdura por décadas ,o Terno de São Benedito é o único entre os Catopês que "não pode ter" um instrumento que os dançantes nomeiam por "chama". É o tambor vigoroso, intenso, o mais ouvido. Tambor de alta floresta, que chama, convoca, pontua as marchas, severo, surdo na sua tarefa. E que impõe e dita a cadência.
8 - Como o antigo chefe do imemorial Terno de S. Benedito, o que lhe transferiu o legado ao morrer, não tinha o "chama" no grupo, Expedito sustentou a tradição. O Terno então sai sem nenhum " chama", sem o seu vigor retumbante, a convocação ouvida ao longe, e isto não faz falta. Mestre Expedito, catopê desde sempre, o carroceiro que deixou uma máquina de hemodiálise para cumprir os compromissos mais importantes da sua vida, ele tudo ilumina e vence com sua humildade. Um avatar entre os Catopês.

Para finalizar: Mais uma vez os Catopês não estão satisfeitos com a festa paralela que se realiza nos dias e noites dos Reinados e do Império, do Divino, que será amanhã. Um imenso palco na Praça da Matriz, que é o endereço remoto da Festa, o palco impede que os dançantes passem por lá quando vão fincar os mastros de sua devoção, à noite - e hoje é o último. Isto dói muito neles, que apenas baixam a cabeça e murmuram a dor que isto importa.


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Por Saulo - 20/2/2014 08:55:57

Escabroso detalhe da execução ocorrida anteontem no prolongamento da antes pacata e bucólica Vila Brasília em Montes Claros. Um dos atiradores, ao descarregar a arma, colocou o pé na cabeça agonizante de sua vítima. E, sempre atirando, acertou com um tiro o próprio pé. Daí a trilha de sangue que deixou, ao se dirigir a hospital, onde teria sido descoberto. É a versão de muitos vizinhos. Outro detalhe: o horror desta execução é porque toda a cena foi filmada por uma das duas câmeras de TV de um prédio em construção, na frente do qual ocorreu a execução sumária, e onde trabalharia o homem procurado. As ruas do Brasil, todo o Brasil, estão cheias de execuções, tão pavorosas como esta. O detalhe é que, pelas imagens que agora correm o mundo, é possível ver cada lance da barbárie, cruel e vergonhosa, independente de onde aconteça - aqui ou numa viela de Xangai. É preciso lembrar, sempre. Durante a Guerra do Vietnã, um dos episódios mais sangrentos do último século, a execução filmada de um guerrilheiro (foto acima) chocou e cobriu o mundo de vergonha, e apressou o fim da guerra. Era um conflito mundial. Uma guerra aberta, solenemente oficializada, mas a cena em nada - na escala humana - foi mais pavorosa do que a que Montes Claros assistiu há dois dias, repetida, e que tristemente exportou para o mundo. A brutal imagem sinaliza que a guerra aqui, embora não declarada, é também uma guerra, com o seu cortejo de horrores - e exatamente na terra que certa vez viu brotar uma melodia universal -"Amo-te Muito", de inexcedível ternura. Os sinos dobram por nós. E por nossos filhos. Choremos todos.



62402
Por Saulo - 5/10/2010 09:43:42
Não, não sou analista político. Disso larguei há muito tempo. Mas a crispação política, as dores dispersas pelo vento, isto também dói em mim. Por isto, peço licença para enviar um poema. Talvez caiba no tempo sofrido pelo qual passamos,todos. Fala de um menino - "o mais pequeno". É a ele que recorro sempre que o tempo embrutece, fica rude além. O autor, para contrastar, é o maior dos poetas da lingua portuguesa, nossa lingua também. Ouçam. É fernando pessoa, morto aos 47 anos, falando pela boca de Alberto Caeiro, morto bem antes dele:


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


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Por Saulo - 17/9/2010 23:01:54
Centenas de pessoas – sem prévia convocação – foram ao cemitério neste fim de tarde se despedir de Andrey Ribeiro Cristoff, que cedo partiu. Deixou-nos aos 52 anos, jovem. Há dois dias, não era visto. Havia saído de casa para render a mãe na cabeceira do pai, o médico Konstantin Cristoff, internado há semanas na Santa Casa, num quadro de pneumonia. Procurararam-no. O acaso ajudou a achá-lo na porta da Santa Casa, ali diante da igrejinha minúscula. Estava no carro, tombado sobre o banco do passageiro. Provavelmente morreu na noite de terça-feira, quando chegou para substituir a mãe nos cuidados com o pai enfermo. Tinha mal de Parkinson. Tomava medicamentos que lhe davam sono. Extenuado, depois de noites de vigília, talvez tenha adormecido logo que estacionou o veículo. De um sono, passou a outro – supõe-se. Exatamente na porta do hospital que, como arquiteto, ajudou a modernizar e a humanizar. É o resumo.
A notícia que ontem à noite circulou como uma navalha reuniu os amigos, os admiradores, os colegas, familiares, convocou a unanimidade que reconhece nele o arquiteto mais inspirado de sua geração. Tudo afinal coube nas três palavras singelas que iluminam o seu legado: o bom Andrey. As circunstâncias não permitiram a realização do velório, mas o Cemitério – que no grego sugere dormitório - estava cheio dos que o admiram, e que por uma cadeia invisível se movimentaram para não faltar. Padre Henrique fez a prece. A filha falou do pai brincalhão. E o corpo foi depositado na campa do avô legendário, o Sr. Cristo, pai de Konstantin, búlgaro de nascimento, de brancas barbas, e olhar severo, imigrante, patrono do mercado de Montes Claros, e que ensinou a cidade, ensinou a todos nós, a plantar e colher frutas, verduras e também flores, no frescor da manhã que faz o dia começar, e a vida a recomeçar. Padre Henrique, sempre ele, disse alguma coisa que rebuçou o clima de justificada prostração, desolação, substituído pela aragem de esperança, vinda não se sabe de onde, que tudo modificou. O Bom Andrey seguiu debaixo da admiração de todos, lavado de suas dores, alegre, risonho, gentil; como sempre amável, afável. Bom, bom e bom.


58175
Por Saulo - 9/5/2010 17:02:20
Foi extraordinariamente bom que G. Magela Sena, neste Mural, tenha apanhado um fragmento do poema “Dia das Mães” para ilustrar suas belas palavras belas. Deu-me a oportunidade de evocar o poema inteiro, que todos os anos, no Dia das Mães, é lido alternadamente nas rádios 98 FM e 93 FM, de M. Claros. O poema é bom, alto, extraordinário. De uma atualidade cortante, que enternece e comove, e o seu autor - infelizmente hoje pouco conhecido - ainda há de remerecer um destaque que lhe faça justiça plena. Todos os que tiveram o privilégio de ouvir a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nos anos 40, 50 e 60, a maior escola de jornalismo que este País já ouviu, terão neste nome uma referência segura, bem fixada na memória, e na gratidão, como eu quero dizer que tenho.
Giuseppe Ghiaroni. Afinal, era dele - e de quem mais poderia ser? - a radiofonização da vida de Jesus Cristo, que literalmente parava o Brasil nas Sextas-feiras da Paixão. Naqueles dias (que sempre nos seguem, e nos seguirão sempre) apenas um soluço era capaz de escapar de nossas gargantas, no silêncio que ia atrás do lamento das matracas pelas ruas montesclarinas. Era ouvir o rádio em casa, correr para a Procissão do Encontro, para a Via-Sacra, para a Adoração da Cruz e os Lamentos de Jeremias; à noite, correr para ouvir o Canto de Verônica na Cerimônia do Descendimento do Senhor Morto, para Contemplar a Mater Dolorosa na redoma de vidro de padre Dudú e seguir a banda de música nada marcial atrás do Esquife Santo, e voltar correndo para casa, para o pé do rádio, a tempo de ouvir os últimos e lancinantes Açoites e as Quedas do Mestre na Escalada Dolorosa do Gólgota.
Este Giuseppe Ghiaroni, volto a dizer, recordem comigo, era mineiro. Nasceu em Paraíba do Sul. Foi poeta e jornalista. Emigrou para o Rio. Trabalhou na redação do jornal A Noite. Seus poemas - lidos na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nome que é preciso pronunciar sempre por inteiro – seus poemas e crônicas entraram para a história do Brasil! Dentre as Obras publicadas e mais conhecidas, estão O Dia da Existência, seu primeiro livro, de 1941, A Graça de Deus, de 1945, e a Canção do Vagabundo, de 1948. Em 1997 publica A Máquina de Escrever, obra lançada no Programa do Jô! Antes de ser poeta, foi ferreiro, “office-boy”, caixeiro e redator do “Suplemento Juvenil”.
Esteve conosco, bem perto de todos nós, até os 89 anos. Faleceu em 2008, no Rio, e muito tristemente lamento que os sinos não tenham dobrado em homenagem mais que merecida a este que nos faz levantar quando pronunciam o seu nome.
Já nos dias conclusivos, anos 90, crepúsculo, foi redator da Globo. Estou convencido de que não foram das suas melhores horas de criação, pois que falava de uma altura que talvez a rede de TV não pudesse alcançar e sentir, para permitir que viajassem no éter (como nas três décadas mágicas do rádio brasileiro) para penetrar e persuadir mentes, corações e almas. No Rádio. No rádio, onde a imaginação é a força criadora, insuperável, como podemos testemunhar nós todos que fomos criados ouvindo Jerônimo, o Herói do Sertão, O Anjo, Balança mas não Cai, a Lira do Xopotó, Obrigado Doutor e novelas inapagáveis como O Direito de Nascer. (Pare. Ouça o rádio que toca dentro de você, que viveu naqueles dias de ouro).

Convido. Querem ver o tamanho da poesia de Ghiaroni, que - como disse - ouço todos os anos nas ondas da 98 FM (que hoje completou 29 anos) e da 93 FM, por ocasião de todo Dia das Mães? Leiam abaixo. Guardem. Levem para a escola. Chorem. Chorem se as lágrimas subirem do e ao Coração.



Dia das Mães

Giuseppe Ghiaroni

Mãe! eu volto a te ver na antiga sala
onde uma noite te deixei sem fala
dizendo adeus como quem vai morrer.
E me viste sumir pela neblina,
orque a sina das mães é esta sina:
amar, cuidar, criar, depois... perder.
Perder o filho é como achar a morte.
Perder o filho quando, grande e forte,
já podia ampará-la e compensá-la.
Mas nesse instante uma mulher bonita,
sorrindo, o rouba, e a avelha mãe aflita
ainda se volta para abençoá-la

Assim parti, e nos abençoaste.
Fui esquecer o bem que me ensinaste,
fui para o mundo me deseducar.
E tu ficaste num silêncio frio,
olhando o leito que eu deixei vazio,
cantando uma cantiga de ninar.

Hoje volto coberto de poeira
e ten encontro quietinha na cadeira,
a cabeça pendida sobre o peito.
Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
Quero acordar-te, mas não sei se devo,
não sinto que me caiba este direito.

O direito de dar-te este desgosto,
de te mostrar nas rugas do meu rosto
toda a miséria que me aconteceu.
E quando vires e expressão horrível
da minha máscara irreconhecível,
minha voz rouca murmurar:``Sou eu!"

Eu bebi na taberna dos cretinos,
eu brandi o punhal dos assassinos,
eu andei pelo braço dos canalhas.
Eu fui jogral em todas as comédias,
eu fui vilão em todas as tragédias,
eu fui covarde em todas as batalhas.

Eu te esqueci: as mães são esquecidas.
Vivi a vida, vivi muitas vidas,
e só agora, quando chego ao fim,
traído pela última esperança,
e só agora quando a dor me alcança
lembro quem nunca se esqueceu de mim.

Não! Eu devo voltar, ser esquecido.
Mas que foi? De repente ouço um ruído;
a cadeira rangeu; é tade agora!
Minha mãe se levanta abrindo os braços
e, me envolvendo num milhão de abraços,
rendendo graçs, diz:"Meu filho!", e chora.

E chora e treme como fala e ri,
e parece que Deus entrou aqui,
em vez de o último dos condenados.
E o seu pranto rolando em minha face
quase é como se o Céu me perdoasse,
me limpasse de todos os pecados.

Mãe! Nos teus braços eu me tranfiguro.
Lembro que fui criança, que fui puro.
Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta
que eu compreendo o que significa:
o filho é pobre, mas a mãe é rica!
O filho é homem, mas a mãe é santa!

Santa que eu fiz envelhecer sofrendo,
mas que me beija como agradecendo
toda a dor que por mim lhe foi causada.
Dos mundos onde andei nada te trouxe,
mas tu me olhas num olhar tão doce
que , nada tendo, não te falta nada.

Dia das Mães! É o dia da bondade
maior que todo o mal da humanidade
purificada num amor fecundo.
Por mais que o homem seja um mesquinho,
enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho
cantará a esperança para o mundo!


54796
Por Saulo - 6/2/2010 10:23:03
Hoje é o dia 6 de Fevereiro. Quando, à noite, os relógios marcarem 23 horas terá completado 80 anos o episódio que mais tornou Montes Claros conhecida em todo o Brasil. O célebre tiroteio na atual Praça Dr. João Alves, a Praça do Automóvel Clube. O assunto foi manchete nos jornais da capital da República por cerca de três meses. Manchete principal, com letras imensas, garrafais. Toda a atenção do Brasil virava-se para o burgo mineiro. Tropas federais foram enviadas a Montes Claros. Um advogado que chegou a presidente do Supremo Tribunal Federal recebeu a incumbência de apurar os fatos.
Hoje à noite, a cena que o historiador Hélio Silva aponta como o primeiro tiro da Revolução de 30 completará oito décadas, com a cidade pacificada, neste particular, e quase sem saber de nada - pois esquecemos facilmente a nossa própria história, a trajetória comum, de todos.
O fato é que, naquela hora, naquele 6 de Fevereiro de 1930, chegava a Montes Claros um trem especial trazendo o vice-presidente da República, então uma autoridade infinitamente mais poderosa do que atualmente é. O trem, cheio de autoridades, despejou sua carga de importância na gare local e o cortejo desceu pelas ruas. Eram dias de política acirrada, mercurial.
Ao passar defronte à casa do chefe da política adversária, dali onde hoje é o alegre Automóvel Clube, partiu intensa fuzilaria. Moravam lá Doutor João Alves, chefe da Aliança Liberal, e sua célebre mulher, dona Tiburtina Alves, vinda de Itamarandiba, perto de Diamantina. A ela se atribuía um poder enorme, uma capacidade de liderança incomum. São muitas as versões, como tais conflitantes.
O fato é que da intensa fuzilaria restaram corpos pela hoje mansa, pacífica e quase relegada Praça, mãe dos catopês que desfilam pelas ruas da cidade a cada agosto novo. Nunca se contou o número de feridos. Apenas o de mortos: um menino, na calçada do que hoje é o prédio do Automóvel Clube; o do secretário do vice-presidente da República, Melo Viana, chamado de Rafael Fleury; e mais - feridos mortalmente - João Soares da Silva, Moacir Dolabela e dona Iraci de Oliveira Novaes, esposa de Eudison Novaes.
No pânico que se seguiu, a comitiva voltou a toda pressa para a estação ferroviária. O trem do poder partiu - de ré - para Belo Horizonte. Não havia tempo, era preciso recuar a todo galope. O Brasil recebeu a notícia, atônito. A perplexidade em Montes Claros não foi menor. Por anos, a história decantou o assunto - e a sabedoria de parte a parte felizmente sepultou os seus miasmas.
Nos últimos anos, nas últimas décadas, pessoas ligadas aos dois lados viveram harmoniosamente, no cumprimento da lição de que se deve caminhar para frente, para cima, para o alto. A cidade de Montes Claros passou a ser referida com algum desconforto nas maiores cidades do Brasil, especialmente nas instâncias que se julgavam mais civilizadas.
O maior entre os poetas, que aqui veio logo depois, Carlos Drummond de Andrade, mais de uma vez referiu-se ao assunto, para extrair dele uma referência elogiosa ao nosso povo, reverente à cultura aqui estacionada, quase sempre a mostrar-se e a exibir-se por méritos da incomum música que Montes Claros produziu e exportou - em forma de serenatas. As suas Modinhas Eternas, tendo no bardo João Chaves, o líder do cortejo angélico, literalmente tocando todos os instrumentos de uma banda de música.
Era o contraste, o contraponto, para a cidade apontada, injustamente às vezes, como valentona, bélica, capaz de armar uma fuzilaria de expressão federal. Não. Muito ao contrário. Tínhamos mais do que lições de intolerância – fomos capazes de produzir e de espalhar por todo o Brasil páginas como Amo-te Muito, Eterna Lembrança, o Bardo.
(A má fama que queriam nos impingir deteve-se diante das músicas de um inspirado e lírico sertão, cantando ao luar).
É este o episódio que Montes Claros - quase sem saber - hoje comemora, ainda que com as homenagens profundas do silêncio reverente. Oitenta anos de uma página do Brasil. Acentua-se o entendimento de que daqui realmente partiu o primeiro tiro da Revolução de Outubro de 1930, que levou Getúlio Vargas à Presidência da República, caudilho que depois se perdeu num vasto quadro ditatorial.
Em boa hora, seria oportuno que a história - e não as muitas versões dela e seus julgamentos subjetivos - merecesse um relato alto no local dos acontecimentos.
(Ali, mais de uma vez, fui levar pessoas que pediam para conhecer o território do célebre 6 de Fevereiro de 1930. Assunto que partiu o País e produziu lendas e folclore, que seguirão)

Não tenhamos medo da história. Ela prosseguirá como A Mestra da Vida. Aliemo-nos, pois, a ela. O passado, aquilo que não passa nunca, é o que nos sustenta.
Montes Claros foi e será sempre capaz de ressurgir, erguendo-se para os momentos sublimes, ao luar, em torno de eternas lembranças.

(PS: Esta relembrança é também uma homenagem aos que fazem aniversário hoje, neste 6 de Fevereiro)


50469
Por Saulo - 24/9/2009 09:14:11
Inquestionavelmente, o prefeito Toninho Rebelo é tido como o melhor prefeito da história de M. Claros. Esta opinião é repartida principalmente entre estudiosos, historiadores, analistas da vida profunda da cidade. Contudo, nem este título, esta reverência máxima do tempo, é capaz de fazer ignorar que foi na sua administração que a cidade viu vir abaixo talvez o marco arquitetônico de maior valor histórico - exatamente o velho Mercado Municipal, onde hoje está o caixote de aço chamado de "shopping popular". A história é muito severa, acre, com quem não a trata bem. Mesmo os melhores entre os melhores, neste caso, mesmo o melhor entre todos, não é poupado do dissabor que a história liberta. Toninho tem mil motivos para ser lembrado, e louvado, e jubilado. Mas, ficou este detalhe, que ainda hoje foi lembrado no excelente comentário de Manoel Hygino, no jornal "Hoje em Dia", de Belo Horizonte.
Se o madeirame do velho mercado ainda existisse em algum lugar localizável, não tenham dúvida: mais cedo ou mais tarde, um clamor suscitado pela história levaria à reconstrução do velho templo da história de M. Claros. Assim procedem os países mais adiantados, que sabem que o presente e o futuro são construídos com as lições imorredouras do passado.

Hoje, contudo, digo a todos: não alimentem vãs esperanças. Qualquer pesquisa que se fizer com a população, no estágio em que se encontra, indicará, lamentavelmente, que o grosso desta população quer um trator arrancando praças e monumentos para ali colocar novos cimentões, carros, fumaça, vertigens, aquilo que costuma identificar como progresso - e que rigorosamente não o é. Mas, mesmo entre os que não têm o costume, ainda, de faiscar as fontes primárias do saber e do conhecimento, que é exercício de humildade, mesmo estes um dia não muito distante evoluirão para um ponto de esclarecimento que livre a maioria circunstancial de cometer tantos erros que a história registra, e que sobre ela - a maioria - chora copiosamente.
Nunca esquecer que Jesus Cristo foi condenado pelo voto esmagador; e que Hitler subiu ao poder para cometer uma das maiores chacinas da história com a quase unanimidade das escolhas do povo materialmente mais adiantado da Terra.

Nunca esquecer que o número de opiniões numa mesma direção não constrói uma só verdade. Uma única verdade.

Ao contrário, é preciso lembrar que homens solitários, quase sempre esmagados, imolados, variando entre o burel e o tecido de algodão cru, mudaram para melhor o curso da história - com a sua lucidez, e com a sozinha coragem. Postaram-se esquálidos à frente de legiões enfurecidas, enlouquecidas, e impediram - sozinhos é preciso repetir - que colossais partes da humana-idade se precipitassem por caminhos ainda mais escabrosos.

O Mahatma é apenas um deles.
Cito Gandhi, o mais conhecido entre os mahatmas dos tempos modernos. Mas, a história está cheia deles.
Crescentemente mais importantes quando sequer deixam o nome para serem louvados, pois aqui não vêm para serem louvados.
E quem não deseja ser louvado, procura deixar um olhar de amor, de compreensão, também aos louvaminheiros.


50309
Por Saulo - 20/9/2009 09:30:22
19/09/09 - 11h49 - "Esse barulho que vem das festas e “shows” (...), e que impede o sono e a tranqüilidade de parte da população, é uma agressão aos direitos humanos e fere frontalmente o artigo 24 da Declaração que garante a todas as pessoas o direito ao repouso"

Excelente o comentário de José Prates, este repórter que nos deixou na década de 50, há portanto 60 anos, para correr o mundo como oficial da Marinha Mercante do Brasil. Ele põe a mão na ferida, no ponto central da questão.
Não é apenas o ruído que incomoda a população – ou parte expressiva dela. Pior que o barulho, é o desrespeito reiterado da lei.
Pior ainda, é o desrespeito da lei exatamente por quem tem a obrigação, em nome da lei, de fazer cumprir a lei. Este é o ponto mais doloroso da questão. Chama-se arbítrio. Ato arbitrário.
Temos um surto crescente de barulho artificial na cidade, não o seu barulho normal, das ruas, mas barulho provocado. Os três níveis de leis do País – o federal, o estadual e o municipal – repetem a proibição, mas nenhuma das leis é cumprida. São ignoradas pelos governantes eventuais.

É preciso reiterar que o problema de barulho em M. Claros, principalmente o causado por shows em área pública, intensificou-se com a criação do carnamontes, há quase quinze anos, na primeira gestão do prefeito Jairo Ataíde.
Ele localizou um carnaval temporão no fundo da Santa Casa, o maior hospital entre Belo Horizonte e Salvador numa distância de mil quilômetros. Ignorou os valetudinários, os que, enfermados, não podiam se levantar e procurar outro lugar.
O barulho foi ampliado nos anos seguintes, passando incólume pela administração de Athos Avelino e desembarcando na atual, que teve – e ainda tem - a chance de suprimir o absurdo praticado em vias públicas, e no interesse de gerar lucros privados. (Ainda que fossem lucros públicos, seria absurdo, pois a lei não o permite).

José Prates toca no cerne do problema ao invocar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Lei Moral de toda a Humanidade, a declaração também neste ponto procura salvaguardar a Vida, a Saúde, o Sossego. Mas, entre nós, é solenemente ignorada.

Os políticos estão mais preocupados com sua sobrevivência eleitoral, do que em proteger a desvalida população, capaz de ser enganada com expedientes os mais diversos. E falo aqui em tese, e não em relação a eventuais administradores – os de agora, e os de ontem.

Desejo citar que o respeito à lei, o respeito à lei legítima, deve ser sagrado, caso contrário estaremos de volta aos tempos da barbárie.

A lei precisa ser cumprida por todos, e em especial, e em primeiro lugar, pelos administradores públicos.
De nenhuma forma, podem estes deixá-la de cumprir, ao seu talante.
Mas, lamentavelmente, sistematicamente a descumprem, adotando a satisfação do próprio interesse sobre o interesse coletivo.
E os demais entes públicos nem sempre atuam para que o transgressor seja enquadrado, e obrigado a cumprir a lei. Um disparate completo.

Permitam-me lembrar um exemplo de como é impostergável a exata aplicação do império das leis, o que ocorre de maneira singela e corriqueira nos muitos países civilizados.

No ano de 1991, em plena guerra do golfo, percorri diversos países da Europa. Viajei em aviões vazios, porque havia a promessa de explodi-los no ar, especialmente na rota mais visada da época, a que ligava Paris a Nova Iorque.
Na Alemanha, Itália e França, a nossa presença por lá, de pessoas de países tão remotos e exóticos em dias de guerra, causava espanto – pois a Europa sabe bem as dores que uma guerra produz.
Perguntavam espantados – “o que fazem tão longe de casa, quando rugem os canhões e são apontadas as armas mais destruidoras que a humanidade já viu?”.

Pois bem. Neste clima de sobressalto planetário, li ainda na Europa o relato de uma belíssima lição de cidadania. Li, naqueles dias de medo.

O homem que comandava os ataques no Golfo Pérsico, o presidente dos Estados Unidos, por sua vez enfrentava em casa, na porta da Casa Branca, uma manifestação de pacifistas.
Ele tinha poder de autorizar o maior ataque de armas de alta tecnologia que o mundo já viu, mas não tinha - felizmente não tem - poderes para impedir manifestações pacíficas na porta de sua casa. O presidente que fazia estremer a Terra com bombas, não podia calar os descontentes na sua porta!

Contudo, o vizinho tinha, tem este poder. Invocando uma prosaica lei do silêncio, o vizinho chamou a polícia, denunciou o excesso de barulho, e a lei foi imediatamente aplicada, reduzindo o ruído aos níveis permitidos.

Taí o exemplo, que o comentário de José Prates fez despertar em mim. Louvado seja ele.

Também não custa mencionar uma entrevista da Sra. Thatcher, então primeira-ministra da Inglaterra, quando visitou o Brasil.

Citarei de memória:
- Na Grã-Bretanha, ninguém está acima da Rainha. Mas a Rainha está debaixo de Deus e da Lei. A Rainha faz estritamente o que a lei lhe autoriza fazer. Nada além.

Aqui, não.
Qualquer governante, desde vereador a outro posto qualquer, acha que a lei é ele. E aplica o seu gosto particular, sobrepondo-o às leis.

Isto é intolerável. Não pode continuar.

(E o comentário de José Prates mostrou que o caso é de ação pública, e não apenas pode ser despertado por alguem que se sinta ferido no seu direito).

Senhores Promotores – Por favor, zelem pelo cumprimento da lei. Todos aguardam o momento de aplaudir


44404
Por Saulo - 17/3/2009 09:02:58
17/03/09 - 8h38 - "Seu burgo sertanejo era fagueiro, sonoro, de belas luas cheias, de namoros contidos, de paixões calorosas e talvez letais, fez revolução, gerou um presidente que foi de Minas Gerais e de Santa Catarina, mas Cyro era dos Anjos não se deixou crepitar nas chamas dos excessos"

Reparem: todos falam da M. Claros do passado ("que não passou") com grande enlevo, lirismo, poesia extrema, saudades.
Aqui, neste espaço, é um desfilar de recordações, de pungente nostalgia, de que esta página de Manoel Hygino hoje é mais uma prova.
Todos choram a M. Claros submersa, atingida por falsa capa que alguns - por desconhecer, é claro - ousam chamar de "progresso", mas cujo real nome é inchamento, inchaço.
A cidade fisicamente inchada, pisoteada, despojada dos seus valores, desventrada de si, de sua natureza terna e eterna; tomaram-lhe o sonho e ela devolve lágrimas, que se vão empoçando nas ruas, nas calçadas, em forma de repetidos lamentos. Chora a saudade, intensa - profunda até na geração que mal alcança os 30 anos.
É preciso analisar melhor este fenômeno.
Povos que em demasia de recordações debruçam o olhar sobre o que se foi ainda há tão pouco é porque, por justificado motivo, estacam diante do caminho que se abre.
A cidade de hoje, material e falsamente agigantada e em espírito brutalmente atingida, nem de longe é a cidade dos nossos sonhos, nem dos patriarcas.
Como o País atual (e não me refiro a política) não é o país que nossas retinas cansadas anteviram, sonhos longamente anelados.
Perdemo-nos no caminho, e é preciso retornar ao caminho - onde havia mais flores, entre elas jasmineiros por certo.
Há belíssima frase que reconforta, que lava nossas lágrimas, e nos sugere o roteiro:
"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim".
É sempre tempo.


39287
Por Saulo - 3/10/2008 11:52:28
É preciso que Isaías, ou outro Isaías, venha esclarecer o coração e a mente do autor da mensagem de nº 39.136, identificado como Daniel Rodrigues.
No dia 29 de setembro, às 23 horas e 29 minutos, Daniel disparou:
“Em relação à mensagem nº 39096. Eu gostaria de saber desde quando a praça de esportes é cartão postal de Montes Claros? Só mesmo alguém que não mora aqui em MOC, para desaprovar tão grandioso e magnífico projeto de urbanização e otimização da velha e surrada praça de esportes. Façam uma pesquisa com seus grupos de amigos, conhecidos, vizinhos, etc. Para ver quantos deles freqüentam a referida praça. Causa-me estranheza, o fato de, tal aberração sair de um morador do DF, que é símbolo de urbanização e aproveitamento do espaço público para fins realmente necessários”.

A nossa Praça de Esportes tem história. Talvez você, Daniel, seja muito novo e desconheça as lições da “mestra da vida”, que anda mesmo em falta. O fato de o local estar ultrajado, abandonado, sujo, esquecido, violado, importunado, ofendido por eleitoreiros quiosques – tanto desprezo e desleixo não foram causados pela Praça. O MCTC é vítima, calada, da ação nociva de uma má fé militante, que impõe em tudo a sua pisadura.
Ali, décadas atrás, Montes Claros viveu momentos de Glória. Talvez um dos seus dias mais altos. Atletas se projetaram para o Brasil. Famílias foram felizes. Crianças brincaram. A juventude aflorou e viveu, em sadios costumes. Havia uma hora dançante, saiba, ao meio-dia, e as canções que não chegaram à sua geração bailam por lá, bailam nos corações. Pergunte aos seus pais, freqüente os livros.
Em declínio, pela ação inconseqüente dos políticos, sempre eles, a Praça de fato agoniza, mas não é a culpada. Não apresse, nem deseje o seu fim, pois o rebroto é o que ela merece. Não lhe sejamos ingratos. Glórias não podem ser assassinadas. Por mais que estejamos, todos, submersos a ondas de insensatez e de desvario, é muito pedir a supressão do que melhor representa a Vida.
A derrubada de valores, valores como o Phartenon, o Coliseu, as Pirâmides, o casario de Diamantina, as ruínas aparentes de Ouro Preto, a Catedral de Chartres, destruir coisas assim, pelo só fato de não sabermos o que significam, é mesmo desatino muito, até para um mundo enfermo como o nosso.
O que a Praça precisa é de socorro, conservação, restauração. Não lhe erga o machado, nem lhe aponte a guilhotina, o cadafalso, pois a sombra do arvoredo e da vida que ali estuam recairá sobre os seus e os nossos filhos. Ter área verde, com aquela, preservada aos esportes, à contemplação e à Vida, numa cidade seca e quente como a nossa, é privilégio que não pode a ignorância – e digo aqui apenas no sentido ignorar – querer extinguir. Um único passarinho que tenha seu ninho numa daquelas árvores quase centenárias talvez lhe esclareça melhor do que podem as palavras. Consulte-o, ao amanhecer; quem sabe ao fim do dia.
Quanto ao fato de serem muitos os que querem atropelar a vida já tão espancada por nós, como parte de uma maioria endoidecida, também não se deixe impressionar.
Ao longo da história, o número de opiniões numa direção jamais ergueu uma só Verdade.
É preciso repetir. Hitler subiu ao poder pela escolha da maioria.
Jesus, o Meigo Rabi, foi conduzido à morte pela multidão, manobrada pelo Sinédrio, pelo farisaísmo.
Ghandi calou-se; deitou-se no jirau, jejuou; para, hirto, em silêncio, aquietar uma Calcutá devastada pelo ódio, pela luta étnica que incendiava rua após rua.
Parou o ódio com o Silêncio.
A força de um faquir nu, um só, o que fabricava suas roupas de algodão cru com as mãos, contra milhões de mentes ensandecidas, matando-se mutuamente.
Francisco, o de Assis, cuja véspera hoje comemoramos, levantou a Canção da Perfeita Alegria, e celebrou o Irmão Sol, a Irmã Lua, o Irmão Corpo, a Irmã Morte. Cantou a vida natural.
As árvores, o verde, as águas, os passarinhos - não é justo que paguem por nossa muita ignorância. Pense nisto. A Vida quer segurar nas suas mãos, Daniel.


39181
Por Saulo - 1/10/2008 10:12:54
A mensagem do Sr. Antônio Sérgio, ao sugerir que mudem da cidade os que estão em desacordo de que a cidade se transforme, cada vez mais, no pandemônio em que já virou, é toda ela cheia de equívocos. Alguns anos de estudo talvez clareiem o raciocínio do autor.
Primeiro: a questão não envolve, de nenhuma forma, o embate entre correntes religiosas. Definitivamente, não. Este tempo está superado. Trata-se de barulho. Apenas de barulho.
Em certas áreas de pouco conhecimento, necessitadas de mais leitura, de estudo e aplicação, de cultura mesmo, infelizmente prospera uma corrente, deformada e deformadora, que sugere um vago direito que teriam os cidadãos, isoladamente ou juntos, de fazer barulho.
Por este pensamento, pessoas teriam um estoque de ruídos a produzir, subordinando os ouvidos alheios. É deformação.
O Direito Universal, todo ele, principia no Direito à Vida.Ora, direito à vida é o mesmíssimo Direito à Saúde.
O mundo inteiro reconhece que altas doses de ruído são prejudiciais à saúde e, portanto, à vida. A rigor, o que existe é o direito ao sossego, ao silêncio protegido, nos níveis que a vida pede para que prossiga. Cabe ao Estado, por delegação de todos nós, assegurar a Vida.
Existe, portanto, o direito ao sossego.
Não existe de nenhuma forma Direito de Fazer Barulho, religioso ou não.
O crescimento das cidades, como alega, também não legitima o barulho – é outro equívoco, embora o barulho por via de conseqüência desponte aqui e ali, por razões óbvias, e não deliberadas. Desenvolvimento não é barulho.
Nunca será.
Com exceção da ainda anárquica Roma, mas ainda assim em padrões infinitamente menores, as grandes metrópoles do mundo – digo do Mundo Civilizado – são silenciosas, muito mais do que nós, embora maiores. É só verificar. Procure informar-se.
O senhor A. Sérgio ainda diz que o Parque de Exposições e a Praça dos Jatobás são “tipicamente” locais de eventos.
Não são.
O Parque de Exposições, como o nome indica, é parque de exposições, de feiras agropecuárias. Por décadas, não foi um Parque de Shows, o que virou agora, diante das dificuldades crescentes na economia do campo, o que não lhe autoriza a abrigar barulhos de toda espécie.
É uma deformação grave, que a lei e as autoridades devem coibir. A lei já proíbe, mas a lei, ora a lei, a lei dorme numa gaveta.
Quanto à Praça dos Jatobás, ou dos falecidos Jatobás, como aqui bem disse uma moça, ela é toda envolvida por bairros eminentemente residenciais.
Deve ser, e é, protegida pela lei do silêncio, que deixou de ser aplicada por conveniência política/eleitoral, transitória.
Hora de obscurantismo, mais um, como foi aquele carnaval temporão nos fundos da Santa Casa. Lembra-se?
Os “murmuradores", saiba por fim, somos nós, pessoas iguais a você, investidas nos direitos elementares, direitos que lhe autorizam a dizer o que quer, dentro da lei, e nós, respeitosamente, a ouvir. Isto sim é pratica da democracia. É o respeito mútuo, civilizado, alto, humanista. Que, contudo, não extrapola ao ponto de autorizar alguém a produzir o ruído que desejar para ferir os ouvidos e o Direito à Vida dos demais, seus semelhantes. Ou dessemelhantes, pois assim nos julga. (Sugiro-lhe ler, quando puder, e talvez com urgência, o poema “Apelo aos Meus Dessemelhantes, do poeta CDA)
Quanto à cultura rural, ela é de quase todos nós. É patrimônio de que nos orgulhamos, e nos orgulharemos.
A vida, quer seja na roça, quer seja nas cidades, é sempre a mesma Vida, dádiva de Deus nosso Pai comum, e de maneira sublime clareada pelo seu Filho Querido, nosso Irmão Jeshua, a quem amamos, com igual e mesmo fervor que os irmãos que defendem o barulho como forma de persuasão e de convencimento.
Quanto à sua última frase – “Quem não aceita conviver com as diversidades e as manifestações, que mudem para um lugar deserto, pois talvez a vida de heremita seja o alvo maior que procuram” – ela é sugestiva de argumentos nascidos dos escaninhos mais profundos da escuridão e da intolerância. Hitler não usou raciocínio muito diferente; o fascismo o consagrou.
Peço que nós, os murmuradores, nos abstenhamos de aceitar a sua sugestão de, modernos eremitas, nos transportarmos para um deserto – aonde se refugiou Saulo, por mil dias, ao encontro de si mesmo. Mas, peço licença para que, podendo, sugerir-lhe que envelheça.
Envelheça um pouco, e de preferência sem produzir ruídos, para que possa ouvir a sua alma profunda. Isto lhe fará muito bem. E não mais encontrará necessidade de enviar seus irmãos ao deserto, que não o do esclarecimento e da luz. Com apreço, e amor, reunidos todos em torno da lição do mestre comum.


34236
Por Saulo - 21/4/2008 12:36:50

Num pé de serra de belo nome estival, Campo Alegre, reuniram-se ontem gerações de uma das famílias mais antigas do norte de Minas, a família Dias. Reagrupuram-se no limpo terreiro de uma casa antiga, sob a sombra de um velho cruzeiro que demarcava uma capelinha. O cruzeiro é só o que restou da capelinha, assentada ao lado de uma casa senhorial de numerosas portas e janelas, de mais de um século. Por décadas, a ermidinha abrigou no seu chão (e abriga, agora, no mato ralo) duas das maiores lendas do Norte de Minas, de todos os tempos: as cinzas de Alfredo Dias, precocemente morto, e de seu pai, o líder do sertão Olímpio Dias (1853-1937). O primeiro foi morto pela irmã, que por sua vez queria impedi-lo de usar as armas, como era do seu feitio, para fazer justiça própria, numa época que cada terra ditava sua lei e escolhia sua autoridade.
Pois bem. Ontem não se tratou ali de relembrar a história; tratou-se quem sabe de não desconhece-la. O que se cuida agora, na convocação de família, num leilão com música, saudades e abraços, é tão somente re-unir a força de todos para reerguer o diminuto templo, símbolo que Francisco Sá, o homem, nascido ali perto, chamou de “atalaia avançada dos povoados cristãos”. Da confraternização, uma certeza subiu: a de que, em qualquer época, no futuro próximo ou distante, quando se contar a saga dos homens do Norte de Minas será obrigatório levantar o estigma que marcou o lindo Campo Alegre, e suas repercussões, não para agravar, nem para exultar, mas para registrar. Ali, o coronel da guarda nacional Olímpio Dias por longa quadra recebeu, digamos, refugiados do Norte de Minas, que por uma razão qualquer tinha a vida sob ameaça e que, debaixo da proteção armada dos seus homens, estavam “guardados” até o próximo acontecimento. São lendas e lendas, e muitas mais até que lendas, e que precisam ser recuperadas com a isenção do tempo.
É preciso mencionar que um neto daquele chefe, o que enterrou o filho morto pela filha, mais provavelmente vítima do próprio irrefreável voluntarismo, um neto chegou à presidência da Assembléia de Minas. (Aliás, foi o mais novo presidente de toda a historiada Assembléia, Antônio Dias). O clã exerceu influência na vida recente da região e aí estão os descendentes, dispersos por vários ramos, para ajudar a levantar a história como existiu. A família, pelo que se sabe, veio de uma longínqua (no tempo) Mato Verde capitaneada pelo patriarca Justino e ocupou regiões de Francisco Sá, desde o Barrocão até o Campo Alegre. Tinha o costume de casar-se entre si, como os colonos do sul do País, e esta tradição – cuja origem é desconhecida – fez de dobras e redobras uma história que, se já surge esparsa citada nas lendas do Grande Sertão de Guimarães Rosa, dão por si só uma história fantástica, que começará a ser levantada com a ajuda de todos para transformar-se em livro.


(Na foto, da segunda metade do século 19, aparece o chefe do clã dos Dias, Justino, rodeado pelos seus filhos homens, da esquerda para a direita: Rochano Dias, Benjamim Dias, Olímpio Dias e João Dias).


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Por Saulo - 18/4/2008 11:07:35
Vai desaparecer em breve a casa do poeta Cândido Canela, no antigo largo da Santa Casa. A praça era, nos anos 50, o ponto extremo da cidade, naquele rumo. Só depois, por volta de 1965, é que surgiu a avenida Mestra Fininha, em direção ao prédio da Escola Normal, que começava a ser construído. Antes, o que havia era uma sinuosa estradinha que passando exatamente ao lado da capela da Santa Casa levava ao seminário dos Padres de Batina branca, no Melo, transpondo um límpido riacho. Tudo era bucólico, simples, belo. Não havia assaltantes. Havia passarinhos, céu, luar. (Há uma belíssima página de Ciro dos Anjos descrevendo este local, por onde se ia à fazenda do seu pai - coronel Antônio dos Anjos - Antônio, dos anjos, repito. Aquele que, montado a cavalo, ensinou o filho a ler e o levou pela mão à Academia Brasileira de Letras, sempre a cavalo.) Mas, falo aqui da casa de Cândido Canela, que irá ao chão, em breve, para no seu lugar surgir um espigão. Havia lá, há ainda, um caramanchão que fazia de toda noite noites olorosas. Sabem o que é isto - noites olorosas? É saudade; saudade de um tempo tão longínquo, mas tão perto. Os poetas, o que fizeram dos poetas? O sino da capelinha da Santa Casa, levou-o o poeta ao partir? As novenas de outubro, de Nossa Senhora das Mercês, tão medianeira de todos nós, talvez apenas nos céus clamem por todos. E a avenida coronel Prates, a avenida do Jatobá, da Estrela, todas cabendo numa só, o que fizeram delas, com um tiro único, de tocaia? Virou correia de transmissão de um supermercado, levando e trazendo carros, pervertida. Cândido Canela, rogai por nós, vítimas desta violência que é nascer num lugar, ser menino nele mesmo, e a partir daí ter de sair todo dia para tentar inútil achar sua cidade no lugar em que ela real existiu.


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Por Saulo - 8/3/2008 10:30:13
Venho aqui, que freqüentei e freqüento. Sou destes dias, mas vivo em outros mundos, em outros tempos, outras noites; nos livros antigos vivo, em páginas passadas. Talvez um refúgio, para não ver o que, desolados, temos que ver.

Volto hoje porque li na página velha, onde a palavra quase é quasi que se escreve, belíssimo poema. Na letra de um menino antigo, hoje esquecido.

Estudou Português com um Poeta Romântico, estudou Latim, Francês e Inglês, Matemática também. Com 12 anos, foi aprovado "plenamente" em Português, Inglês e História, "simplesmente" em Francês, e com distinção em Inglês e Geofrafia. Doze anos ele tinha. Aos 17, fez esta maravilha que aqui me traz:

"Desse Deus as tintas de uma aurora

E as tintas do arrebol,

O casto azul que os céus tinge e colora.

E toda luz do Sol;

Desse-me Deus tudo isso que eu, cantando,

Pediria uma pena ao rouxinol

Melodioso e brando.


E com a tinta e com a pena escreveria

Assim muito de leve

(E com a minha melhor caligrafia)

Na brancura de neve

Desse teu peito casto e sedutor

As quatro letras da palavra - AMOR"


Se me perco em versos assim, deste mundo de agora não querendo ver, é porque minha alma, toda ela, recusa o mundo que aí está.
Perdoai-me o erro das palavras, da grafia e tudo mais, pois lendo coisa antiga, já não sei onde uso o chapeuzinho e que palavras, para dizer a mesma coisa, trocaram o i pelo e.

Naquele mundo desejo voltar, recomeçar, para com todos, todos, fazer um novo fim, disse Chico.

O poeta de 17 anos que me trouxe, e me chama, é um dos mais altos do vosso País.

Contudo, como tudo, também é esquecido.

Chamou-se pelas águas Afonso Henriques da Costa Gyuimarães, de 1870. Alegre, sadio, era dado a espasmos de retraimentos, e os outros meninos o chamavam - "Afonso sonso!".

Preferiu chamar-se, ele mesmo, de Alphonsus, mineiro de Ouro Preto, filho de português e mãe mineira.

- Ela era branca, ela era esbelta.
Olhos marinhos, fronte ideal de celta,
Mãe futura de pobres trovadores


Partiu aos 49 anos. Quase todo o tempo viveu no arrebol, embarcado já no poema aí de trás.


(Depois, se permitirem, irei contando toda a história. Vou de volta, recuo "ao casto azul que os céus tinge e colora". Tenho muita pressa e não retocarei o que escrevi. Depois, se permitirem, isto farei. By)


22251
Por Saulo - 23/3/2007 00:35:15

É comovido, e creio que será sempre assim, que vos chego nesta já madrugada.
Para abraçar as irmãs do Colégio Imaculada Conceição e da Santa Casa de Caridade (assim se escreve, e assim se praticou, com outra variante no final – de Misericórdia).
Sou testemunha do que as palavras contam, aqui.
Menino, admirei o vulto silente de Irmã Canuta, imperturbável.
Convivi com todas, e sei o quanto amam, e amaram, a nossa Montes Claros.
Padre Chico morreu pedindo para voltar para M. Claros.
Na gare de Montes Claros, todos os dias, pedia passagem para.... Montes Claros.
Sonhava com o trem que o conduzisse de volta ao burgo de sua juventude, descido de um cavalo, e de longa viagem, adventício no sonho de unir a Luz da Europa ao Sol da América.
Todos os dias.
Sob sol escaldante.
De batina branca, e guarda- chuva.
Quase na mesma hora, por volta do meio-dia, a pedir a passagem de volta – eu presenciei.
A viagem para a qual se preparou, e esperou longamente, o embarque último, dela também me lembro, estava lá.
Foi na tarde quente, num quarto da Santa Casa, com o só barulho do ventilador a concorrer com as salve-rainhas, “Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!, a Vós bradamos os degredados filhos de Eva; a Vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas”.
Padre Chico agonizou lentamente, sob a guarda-escolta de misereres e laudames. Antigo seu sacristão, pus o sum sum corda final, o “Corações ao alto”, que nem mais era preciso dizer.
As moscas, mosquitos, queriam despedir-se também do santo, tocar-lhe a face beatífica, exangue, e é minha parte afastá-los, com o abano que giro no ar. Choram. Mas o choro é bom, sem desespero, pois todos aqui esperam. Germina a palavra esperança, antípodas da outra, impedida de cruzar a porta.

Padre Chico Moureau, o primeiro dos belgas.
O que trouxe os outros, pelas mãos blandiciosas, a caminhar por onde ele caminhou, nas dobras, e redobras, deste manto chamado amor que a palavra caridade esplende. Caritas.

Por ele, em louvor dele, é que o cemitério de Montes Claros reserva a sua melhor frase, a mais alta, onde as frases costumam se cuidar com esmero e nenhuma afetação, que o lugar é impróprio, pois campo-santo é.
Na lápide que o sela à terra de sua escolha, vai escrito:
“Eternamente Sacerdote do Altíssimo”
Padre Chico


21619
Por Saulo - 2/3/2007 21:29:02
"02/03/07 - 20h40 - "Por favor, quem conhecer esta minha mãe tão querida e amada, ou já ouviu falar sobre ela, entre em contato comigo, estarei esperando com muita ansiedade."

Estou comovida com o apelo. Deus pague a vocês por criarem, e manterem, este abençoado espaço que aproxima as pessoas. Aqui, no exercício da compaixão, do amor, encontro ânimo para superar as tristezas que o desatino diário de nosso país, triste país, nos dá a cada hora. Aqui, sinto que o amor - irmão dileto da dor - de fato existe. Eu creio em Deus. Que a todos nos abençoará., digo, com os olhos em lágrimas, e voltados para o Céu, nosso abrigo e nosso destino."

*

Eu aqui, de Belo Horizonte, mas com a alma eternamente em M. Claros, também me comovo. Com as mensagens,de Nágela e de Maria.
Antes de ler as duas, percorria, no miradouro da memória, esta minha avenida tocaiada para virar servidão de supermercado, como se história e vida não tivesse a nossa torturada avenida. Que haverei de seguir, seguirei.

Mas o que delas, das duas mensagens, rebrota, no que exibem do pão de dores nosso de todo dia, me faz tornar ao armazém de luz e esperança que resiste no coração profundo de todos nós. Meu e seu, meu irmão.
Olho para os céus desta nossa capital, e de estrela em estrela vou de volta ao luar de minha cidade.
Sim, há a estrela sobre o pântano, a mais bela. A flor de Lótus, nascida da água pestilenta, a ela não pertence, mas é fruto dela, pois tudo rebrota na/ e da altíssima mão de Deus, nosso Pai.
Não desistam.
A negra noite é parteira da madrugada. E quanto mais negra é a noite, mais em si carrega a alva, a alvorada, a madrugada, o arrebol.
Boa Noite.
Minha avenida, aviltada, não morreu, não morrerá. É estrela do céu, aonde vamos pastoreá-la. Com igual fé, esperança e amor das duas mensagens acima. Doçuras. Boa Noite.

*

"Quando a noite descer
Insinuando um triste adeus
Olhando nos olhos teus
Hei de, beijando teus dedos, dizer:

Boa-noite, amor
Meu grande amor
Contigo eu sonharei
E a minha dor esquecerei
Se eu souber que o sonho teu
Foi o mesmo sonho meu
Boa-noite, amor
E sonha enfim
Pensando sempre em mim
Na carícia de um beijo
Que ficou no desejo
Boa-noite, meu grande amor."


20579
Por Saulo - 1/2/2007 08:22:55
Foi mesmo bonita a chuva de ontem à noite, em M. Claros. O dia havia amanhecido com um manto de névoa na encosta da serraria sul da cidade, na saída para BH. Mas, foi de noite, por volta das 9h30, que a chuva despencou - ela que no sertão faz a catarse. Digo catarse, para que escolham, no dicionário e na vida, a melhor definição para a chuva que entre nós tudo lava: 1) purgação, purificação, limpeza; 2) Evacuação, natural ou provocada, por qualquer via; 3) Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida.
Seja o que escolherem, será isto. Seja isto. Aqui no sertão, desertão - que pouco sabe do mar e dos mistérios do mar - a chuva será sempre assim. Leda chuva. Daí irritar profundamente a nós, sertanejos, quando a TV - claro, que em rede nacional - fala em tempo ruim, ou mau tempo, quando é só a doce chuva que despenca. Sobre nós; sobre nossa porfia. Quem não gosta de chuva, quem nunca passou sede, que a deixe vir para cá, que dela temos precisão. Viva Nós. Viva Virgílio de Paula. Vinde ver a chuva no sertão. "Chuva que chove e o santo que alumeia". Ora pro nobis!


20403
Por Saulo - 26/1/2007 23:03:49
Cabe poesia triste, de um poeta-menino, romântico, para a alma alegre de Nice?
(Álvares de Azevedo morreu aos 21 anos. É o gênio da poesia brasileira e esta, creio que sim, pode ser sua mais bela página:)

"Lembrança de morrer

No more! o never more!
SHELLEY.

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
— Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh`alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos — bem poucos — e que não zombavam
Quando, em noite de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo....
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha
Que minh`alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d`aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!"


19701
Por Saulo - 5/1/2007 09:56:55
Aqui, onde todos contam histórias de M. Claros, vou contar uma. (Espero que muitos façam o mesmo, para nossa maior riqueza).
É história real, acontecida no início do século passado.
O personagem ?
O grande poeta, seresteiro e jurista João Chaves, que ainda assim era chamado depreciativamente de rábula. É possível que apenas raríssimas cidades, como a nossa, tenham reunido numa só família nomes tão notáveis, como Antônio Gonçalves Chaves (nome do fórum), João Chaves (O Bardo) e Monzeca, o grande editorialista mineiro.
À história, pois, que o nariz de cera já vai grande.

Certa vez, numa serenata, João Chaves, mocinho, foi desafiado a musicar a história francesa atribuída ao escritor Emile Faguet. O apólogo narra o caso da mãe extrema que concordou que o filho lhe arrancasse literalmente o coração do peito e o levasse, palpitando, à sua amada, que o exigia como prova de amor.
No caminho, esbaforido, tropeça, e cai, o filho - e o coração da mãe, rolando pelo chão, pergunta: "Tu te machucaste, meu filho?".
(São as mães, as mães são assim - ouço o imortal Ghiaroni, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, dizer-me ao ouvido).

Imediatamente, o João Chaves de uma Montes Claros de 2 mil habitantes empunhou sua lira e ali mesmo, ao luar e ao campo, talvez numa de nossas ruas, improvisa a melodia que conta toda a triste história.

Os colegas, embevecidos, a ouviram.
Ao final, um deles, o seu maior amigo, saca de um revólver e atira 5 vezes em direção a João Chaves. E sentencia:

- Uma pessoa como você não pode viver. Tem que ir para o céu, cantar para os anjos.

(João Chaves, por sorte, não foi ferido e viveu até 1970, quando uma grande serenata, da cidade inteira, exibiu - (e foi mostrada pelo nascente Fantástico, da Globo) - o que ele significa para nós. Significa, no presente do indicativo.

Conto esta história, porque a cidade anda meio triste, acabrunhada, esquecida de suas glórias passadas.

Esquecida de que tem história, e de que, quem as tem, e cultiva, e delas não se envergonha, não se perde pelo caminho.

Estamos assim zonzos, mas há caminho. O caminho, diz o poeta, é caminhar, sabendo de onde partimos.
Obrigado, já me vou.


17927
Por Saulo - 25/10/2006 10:39:25
Perdoai-me a ignorância. Mas, parece que a palmeira da foto é mesmo a Palmeira Antiga, que João Chaves alçou aos céus em letra e música belíssimas...
Por favor, chamem os especialistas.


17391
Por Saulo - 7/10/2006 11:37:35

A bela foto é de uma cidade que não quer ser esquecida.
Resiste, subsiste, debaixo da outra, empavonada sobre o seu corpo crucificado, para ficar na imagem irresistível do poeta. Porque tem filhos, e os seus filhos lutam por ela, a cidade reluta, espalmando história, passado, costumes e cultura. É uma civilização à parte, limpa, que merece viver e pede para viver, porque soube juntar bravura e ternura num mesmo coração. Mas, até quando ?

O progresso que visita a cidade, às vezes em trajes enganosos, muita vez não merece o nome, pois arrasta a qualidade de vida do seus filhos para baixo, em forma de violência, de barulho, de desemprego, de má conduta dos políticos, de desigualdade – entre outras coisas, pois a lista é longa.

Mas a cidade – uma civilização de 250 anos, resiste.

Como “o ouro e a prata”, prova-se pelo fogo.
Certifica-se pela humilhação dos filhos queridos, os que a abraçam, e que com ela seguirão à pira levantada pelos incendiários de sua história.

Nesta foto, o essencial de Montes Claros ressurge através de um dos seus símbolos. A avenida Coronel Prates. A avenida da Estrela. A Avenida do Jatobá. A avenida da Fábrica – a mais simbólica de todas as avenidas, que acaba de ser mutilada, em nome de certo tipo de progresso, que não olha nos olhos.
.
O cenário da foto é o comecinho dos anos 60.

O paralelepípedo está novo em folha. A grama é o relvado inaugural do jardim modelado pelo prefeito Simeão Ribeiro Pires. As tipuanas exibem o viço da primeira juventude. As touceiras de Caetés, “arrebentando em flores, em tão lindas cores, quem as fez assim?”, aguardam os meninos que virão pelo começo da noite falar com elas, e com as estrelas – num tempo em que as crianças, mais felizes, brincavam livremente na porta de suas casas, na rua, na praça, na vida.
.
O triciclo estacionado, repare, é para levar roupa suja e trazer roupa limpa. A carroça, o jeep (como se escrevia) e, ao fundo, as meninas do Colégio Imaculada com seus uniformes de gola de marinheiro. Uniformes de azul e branco, uniformes de sonho. A mãe de vestido rodado que leva o filho pela mão, no meio da tarde, tudo trabalha na foto ingênua para que a cidade, gentil e suave, suave e modesta, se apresente e se reconheça, enternecida.

O “progresso”, certo tipo de progresso que em 4 décadas fez a população multiplicar-se por quase 20 vezes , inicialmente pela industrialização e, depois, pela ruína do campo, este tipo de duvidoso “progresso” transportou a doçura da cidade para a lembrança e para a foto. Equívoco que bem pode ser revertido, se todos quiserem.
.
É inelutável! , dirão os realistas, acima dos pessimistas, mas muito abaixo dos sonhadores.

Contudo, nenhum tipo de progresso, por avassalador e temerário que seja, reúne forças capazes de invadir as almas e as mentes e nelas extinguir o valor, os valores, que a cidade dos montes claros plantou no coração de seus filhos. Que resistirão, é certo.


16041
Por Saulo - 26/8/2006 10:33:17
Sobre os que acham que eleição absolve alguém de crimes e deslizes, o que virou moda.

Nada mais enganoso. Para ficar em 2 exemplos clássicos: Jesus Cristo foi condenado pela esmagadora maioria, a multidão; Hitler nasceu do voto, no caso, o voto da também esmagadora maioria.
(O ex-prefeito Jaito dizia que o carnamontes no fundo da Sta. Casa, agravando as dores dos doentes, era legítimo e correto, porque tinha a aprovação da maioria...)

Dom Marcos Barbosa, monge e poeta, resumiu: o número de opiniões numa mesma direção não constrói uma só verdade.

Humberto de Campos, maior cronista do Brasil, ia na mesma direção: a ditadura do número nada conduz diante da verdade moral.

Emanuel Kant, o filósofo que cito de memória, arrematou: "Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim. ."

Portanto, amigos, não se deixem impressionar quando a maioria (como na enquete aqui), contra toda evidência moral, se inclina pelo equívoco, pois é longo e árduo o caminho para Deus, para a Verdade.

Entres estes, estão os que querem o progresso a qualquer preço, empunhando o pau de fósforo, o machado e a marreta, quando não a foice, para destruírem os valores que encontram pelo caminho e não sabem o quê é.

Se deixarem, queimam o Coliseu, Ouro Preto, Diamantina, como queimaram a Biblioteca da Alexandria.

(Desculpem: não queria fazer comentário, apenas dizer de raspão que dói muito, ainda e sempre, a destruição do Colégio Diocesano e da avenida coronel Prates). O que destruirão agora ???


13134
Por SAulo - 17/5/2006 10:55:53
Leio que a PM de Montes Claros – o Décimo Batalhão de Infantaria, como era chamado – faz 50 anos, por estes dias.

Fecho os olhos.

“Convosco recomponho, revenho ver” (Guimarães Rosa dita ao meu ouvido):

Tenho 5 anos e o homem que me leva pela mão é meu pai.
São 8 horas da noite e vamos pela rua Quinze, quase escura.

Paramos diante da Loja Imperial, na esquina da praça Dr. Carlos.

Há um rumor diferente na cidade.

Daqui a pouco, o som da charamela despontará na distante esquina e um pelotão de homens, todos de amarelo com cuias na cabeça, passará diante dos meus olhos de menino.

Pai, o que é ?

É o batalhão, meu filho. Chegou o batalhão ! Veio de Belo Horizonte.

O ruído dos pés batendo no chão é este que ouço. Ficou também o dobrado, a música - cinqüentenária, sei agora.

Ouço os passos daquela noite. E a mão do meu pai – diante do céu que não se apaga - está úmida junto da minha mão, querida Montes Claros.

Mas ouço, dolorosamente, o gemido das árvores que tombam na avenida coronel Prates, e das máquinas que as levantam pelo pescoço.

Por favor, chamem o batalhão.


(Enquanto não vem o batalhão, o poeta Agenor Barbosa, o menino e o pai do menino recitam pelo caminho de volta:

“À doçura sem fim do silêncio, que espalma/ as suas asas sobre a noite, eu me avizinho/ de minha terra, que me acena como um ninho/ e, na distância, é sempre linda e sempre calma./
A minha terra vive dentro de minha alma.../Deixem que fale o coração devagarinho.../ Que eu pare um pouco, em meio à sombra do caminho/ e lhe teça, a sorrir, este canto e esta palma/
Ouço de longe a voz do berço que me chama/ Voz serena, de amor, de carinho e piedade/ que é suave como um beijo e arde como uma flama/
Minha terra Natal! Minha velha cidade! Dentro do coração que te pertence, clama a dor do meu exílio e da minha saudade”.)


12847
Por Saulo - 7/5/2006 22:15:13
Sobre esta avenida coronel Prates, vou contar. Éramos meninos. Os postes passavam pelo meio da rua, onde hoje ficam as árvores, que eu vi plantar. Um dia, o caminhão esbarrou no poste, na esquina da rua padre Augusto, e fogo saiu comendo a fiação, que era toda encapada. Foi bonito de ver. Pela rua, quase toda tarde, passava a boiada que vinha da malhada dos Santos Reis para o frigorífico Otany, perto de onde hoje fica o prédio da Prefeitura. Fechávamos as portas, correndo. Quem atrasava, permitia que uma outra vaca brava entrasse dentro das casas, com os vaqueiros correndo atrás. Era uma festa. A gente subia nos muros e esperava o peão sair de lá puxando a vaca pelo rabo. Era assim a avenida coronel Prates, ou rua da “fábrica”, em 1960. O prefeito Simeão Ribeiro, que morava na avenida, mandou colocar paralelepípedo e fez o canteiro central. Eram lindas touceiras de uma planta, um lírio, que, depois, muito depois, soube chamar-se Caetés. Nós brincávamos no meio delas, dos caetés. Não havia medo de ladrão, e ficávamos nas ruas até tarde. A luz, a luz era uma mixórdiazinha, mas éramos felizes. Muito felizes. (Como os meninos são, menos agora, quando não podem brincar na porta de suas casas.) Do outro lado, Jandira – ah! Jandira – contava história, e nos ensinava a olhar para o céu, fonte de todo encanto. Foi Jandira quem me ensinou a olhar para o céu, e para o céu olho até hoje, embasbacado, vendo as constelações, as 3 Marias, o Cruzeiro do Sul – toda estrela é minha irmã. Apenas as estrelas não mudam. Sim, de tanto olhar, subíamos para as estrelas. Morávamos lá, junto delas, pois Montes Claros permitia isto, queria isto. Eu menino. Neste tempo, a avenida tinha, completa, apenas a pista que passava ao lado do prédio da prefeitura. A outra era interrompida na igrejinha do Rosário, tão linda ali parada, e onde fazíamos fogueiras. Hoje, triste, leio e penso: o prédio do seminário acabou, vai virar supermercado, hipermercado; o canteiro central, meu Deus!, o que farão com o canteiro central e com as tipuanas ? As vacas que entravam pelas casas, as vacas bravas desapareceram, se foram, e não serão mais arrastadas pelo rabo; o matadouro se foi, as crianças se foram, as meninas internas do Colégio Imaculada também resolveram partir, uma e depois as outras. Por que so eu fiquei ? Acho que está na hora de partir também. As velhas árvores que vi plantar e crescer, minhas amigas, amiguíssimas, confidentes, algumas agora estão sendo levadas pela garra de aço do trator, dependuras na lâmina, e não posso despedir-me delas, como é do meu feitio, de menino antigo, tímido. O que faço? Tenho vontade de pedir para ir junto, de encarapitar-me junto delas e com elas seguir, para onde ?, não sei. Talvez não aceitem. Penso em resistir. Como resistir, se a trincheira que disponho são lírios, touceiras rubras inexistentes de um certo Caetés que viceja agora apenas na rua chamada saudade, que talvez desemboque numa outra, onde a Esperança fez sua morada. Vicejam estes meus caetés apenas no miradouro da memória, e em nenhum outro lugar. Esta noite, que é a última da avenida que vi erguer-se, que me empurrou para ser homem, esta noite verei o que posso fazer por ela, e quem sabe também por mim, nesta circunstância mais indefeso do que ela. Visitarei e consultarei o menino que eu fui. Talvez ele, com os outros, me ensine o que fazer na noite de despedidas. Boa noite, minha avenida. Seguiremos juntos. Iremos no meio de Caetés que por certo rebrotarão; teremos a companhia das estrelas vindas de um de nossas noites de maior esplendor, e Jandira afastará suas doenças, e suas dores (seu pão de dores), e lentamente virá, para contar as histórias que só Jandira sabe contar. Esta avenida não morrerá.


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Por Saulo - 14/4/2006 18:40:01
Oh, vós que buscais a Montes Claros de tempos não tão
distantes!

Vendo este breve, em que se avisa sobre um alarido ímpio na madrugada da Sexta-Feira da Paixão em minha terra, ocorre-me chamar-vos.

Vinde visitar a Semana Santa de Montes Claros, de tempos ainda próximos.

Era toda de luto cerrado.

Já na quarta-feira anterior à sagrada semana, Padre Dudu
conduzia a procissão de archotes. Eu estou nela, menino; sigo a caminhada noturna, lenta, devota, homens de um lado, mulheres do outro.

Revejo o mesmo padre Dudu, pela manhã de Domingo de Ramos, cantando, cantando hosanas! Hosanas!, e nós o seguimos, vivando.

Depois, o padre tão bom, ainda que às vezes repentinamente zangão, o padre Dudu nos envia ao confessionário. Todos.

A Via-Sacra, 3 vezes por semana, repleta de misereres, já está pelo segundo mês de prontidão, toda terça, toda quinta, todo sábado, e não a perdemos.

Cantamos em latim, assim como respondemos a missa em latim, de costas para os fiéis, os olhos apenas para Deus, Nosso Senhor.

A Quinta-feira Santa quando enfim chega, já tem a cidade a seus pés, paralisada e contrita, confessada e comungada.

A Procissão do Encontro sobe as ruas e abre a Sexta da Paixão; dolorida, piedosa, lenta, comovida, atrás dos passos do que vai se encontrar com Sua mãe para dela despedir-se.

Mãe e Filho encontram-se no cruzamento desta vida pequenina, e o punhal exato sobre o coração da mãe comove o menino, a lâmina espetada ali debaixo de negros véus – a mater dolorosa.

“Mulher, eis o seu filho. Filho, eis a sua mãe”, cintila a frase.

(Pelo rádio, lembrai-vos?, pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a PRH5, um Ghuiaroni, piedoso, repete por aguardadas horas o martírio e as quedas de Jesus rumo ao Gólgota, atrás dos quais vamos também, deixando lágrimas, arrependimentos e promessas.)

Ás 3 da tarde, três e quinze, Jesus despido agoniza na Cruz, e nós, de joelhos, cantamos, olhos arrebatados para a Cruz:

Eis o lenho da Cruz,
De onde pendeu a salvação do mundo.

Cantamos, penitentes:

Perdão, Deus clemente, perdoai, Senhor.

Cantamos, arrependidos:

Pela Virgem Dolorosa, nossa mãe tão piedosa,
Perdoai-nos, ó Senhor.

Cantamos, exultantes:

Vitória, Tu reinarás.
Ó Cruz, tu nos salvarás. Vitória....

E a matraca, que da madeira retira secos, metálicos e multiplicados lamentos, a matraca vibra o luto e a dor geral. ( Ouvi, ela está dentro de vós).

À noite, ainda nos braços do meu pai, quase compartindo-lhe o aromoso cigarro de palha e o olhar que não se desfaz, vamos à cerimônia do Descendimento.

Verônica canta do balcão da Matriz, pela voz da linda Ieda (ou será outro nome ?, ajudai-me a recordar), exibindo no sudário a Divina Face.

“Perdão, Deus Clemente!”

Cristo, exausto, é retirado da Cruz e o seguimos na Procissão do Enterro.

Toda a cidade vai junto, a passos lentos, sepultar o que não morre.

Vamos todos, lentamente, dobrados sobre nossas culpas, o Réquien da banda da música soluçando em nome geral.

Depois, voltar para casa a desoras, sem nada falar, sem comentários, severamente mudos, pois a dulcíssima Montes Claros, ao contrário da atual (como leio), não ousa erguer a voz na Sexta-Feira da Paixão.

(Não ousa espalhar pela noite lascas perdidas de um rock insolente e atrevido, trêfego e pândego, a pedir autoridade, e, a mais, piedade.)

***



Sabei, agora, que procuro por minha terra, e isto vos confio.

Sabei que dela, da Santa Semana, só me espera a lua cheia. Restou a lua cheia.

A esplêndida lua-cheia sobre os Montes Claros me devolverá a Semana Santa.

Eu a encontrarei, pois a busco, e ela a mim.

Vinde comigo.


11819
Por Saulo - 23/3/2006 22:35:58
A notícia de que o Seminário Menor de Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças, isto é, o prédio do Seminário Menor de Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças, está vindo abaixo tocou as minhas mais cavas recordações de criança.

Vi-me de novo, entre cobertas, nas frias manhãs de Montes Claros.
Montes Claros tinha frio.

É mês de maio. Todos dormem.

O palor da noite não se foi, e o sol ainda não veio.

Como uma névoa, como num sonho, o som começa baixinho, e vem, lento, flutuando de encontro a nós.

São vozes afinadas, belíssimas, de quase crianças, com suas sotainas, de querubins, de serafins.

Cantam laudes.

Especialmente, cantam a Ladainha de Nossa Senhora, em puro e legítimo latim, afinadíssimo.

"Sancta Maria, ora pro nobis.
Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis.
Sancta Virgo virginum, ora pro nobis.
Mater Christi, ora pro nobis.
Mater divinæ gratiæ, ora pro nobis.
Mater purissima, ora pro nobis.
...................................................
.....................................
........................................`

(Ouçam.

Abram os corações e ouçam, pois ouvir anjos é privilégio das estrelas, que param no meio do céu para ouvi-los.

E ainda não estamos no céu.

Estamos na avenida coronel Prates dos anos 50, e o coro dos anjos é a voz dos pequenos aprendizes de padre que saem em litania pelos portões da velha escola,e vem. Cantando.

Deixem que cantem.

Enquanto cantarem, e cantarão para sempre, nunca o velho prédio – açoitado por marretas e clavas, tratores até - nunca estas paredes cairão por completo e definitivo.

Elas se reerguem como as vozes da litania se erguem.

Não as derrubarão, é certo.

O Seminário de Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças jamais irá para o chão.

Permitam: ouçam o canto completo, e perdoem-me a eterna lembrança. A Saudade. Que sendo palavra nossa, não tem tradução em latim):


“Kyrie eleison.
Christe eleison.
Kyrie eleison.
Christe audi nos.
Christe exaudi nos.
Pater de cælis Deus,
miserere nobis.
Fili Redemptor mundi Deus,
miserere nobis.
Spiritus Sancte Deus, miserere nobis.
Sancta Trinitas unus Deus,
miserere nobis.

Sancta Maria, ora pro nobis.
Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis.
Sancta Virgo virginum, ora pro nobis.
Mater Christi, ora pro nobis.
Mater divinæ gratiæ, ora pro nobis.
Mater purissima, ora pro nobis.
Mater castissima, ora pro nobis.
Mater inviolata, ora pro nobis.
Mater intemerata, ora pro nobis.
Mater amabilis, ora pro nobis.
Mater admirabilis, ora pro nobis.
Mater Creatoris, ora pro nobis.
Mater Salvatoris, ora pro nobis.
Virgo prudentissima, ora pro nobis.
Virgo veneranda, ora pro nobis.
Virgo prædicanda, ora pro nobis.
Virgo potens, ora pro nobis.
Virgo clemens, ora pro nobis.
Virgo fidelis, ora pro nobis.
Speculum justitiæ, ora pro nobis.
Sedes sapientiæ, ora pro nobis.
Causa nostræ lætitiæ, ora pro nobis.
Vas spirituale, ora pro nobis.
Vas honorabile, ora pro nobis.
Vas insigne devotionis, ora pro nobis.
Rosa mystica, ora pro nobis.
Turris Davidica, ora pro nobis.
Turris eburnea, ora pro nobis.
Domus aurea, ora pro nobis.
Fœderis arca, ora pro nobis.
Janua cæli, ora pro nobis.
Stella matutina, ora pro nobis.
Salus infirmorum, ora pro nobis.
Refugium peccatorum, ora pro nobis.
Consolatrix afflictorum, ora pro nobis.
Auxilium Christianorum, ora pro nobis.
Regina Angelorum, ora pro nobis.
Regina Patriarcharum, ora pro nobis.
Regina Prophetarum, ora pro nobis.
Regina Apostolorum, ora pro nobis.
Regina Martyrum, ora pro nobis.
Regina Confessorum, ora pro nobis.
Regina Virginum, ora pro nobis.
Regina Sanctorum omnium,
ora pro nobis.

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, parce nobis Domine.
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, exaudi nos Domine.
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis

(Esta ladainha, cantada em latim, emocionou o mundo na morte de João Paulo II).




Selecione o Cronista abaixo:
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Iara Tribuzi
Iara Tribuzzi
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Alberto Sena
Augusto Vieira
Avay Miranda
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Dário Teixeira Cotrim
Davidson Caldeira
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Isaías veloso
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